O que é? No final de outubro, uma jovem de 12 anos foi alvo de diversos comentários que sugerem assédio sexual após participar de um programa de culinária. Em solidariedade, diversas mulheres relataram nas redes sociais a primeira vez em que elas sofreram assédio sexual. São relatos chocantes, que nos fazem perceber como setores da sociedade ainda encaram com naturalidade a sexualidade feminina pré-adolescente, ainda que a sugestão ou exploração sexual de meninas nessa idade seja um crime. No final de semana seguinte, a prova do Enem pediu uma análise, na redação, do tema “a persistência da violência contra a mulher no Brasil”. Nesta semana, outro movimento surgiu, o “Agora é que são elas”, como reação ao projeto de lei 5069, que dificulta o aborto em caso de estupro. O ambiente é mais que favorável para se discutir o papel da mulher na sociedade e do quão intoleráveis são as situações de abusos sofridas pelas mulheres diariamente pelo país.

Como minimizar a violência contra a mulher e o assédio sexual?

Antes de começar o texto, uma coisa é bem óbvia: não existe maneira do assédio sexual “acabar” do dia para a noite, não importando os marcos legais que se estabeleçam. Os movimentos feministas falam muito de “cultura do assédio”, fenômeno que tem variantes como “cultura do machismo” e “cultura do estupro”,  e a dificuldade na mudança de traços culturais perniciosos (vamos deixar bem claro aqui que o assédio sexual é pernicioso, ok?) é algo historicamente documentado pelas Ciências Sociais.

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Cena 1: em um bar próximo a uma escola pública do ciclo II do ensino fundamental, operários de uma grande empresa,  que toca uma obra pública gigantesca nos arredores, tomam uma cerveja em seu horário de almoço enquanto aguardam o final da aula. Na saída dos alunos, se posicionam em frente à escola e começam a interagir com as garotas que acabaram de sair da aula. Logo depois, convencem algumas garotas a irem para o bar com eles. De dentro do bar, com pouca iluminação e a porta entreaberta, não é possível ver nada, ainda mais porque a  pouca visão do local fica ainda mais turva com a fumaça dos cigarros tragados continuamente pelos operários. Só se ouve a música ambiente, risadas e, em alguns momentos, batidas na mesa e gritos em meio a partidas de truco.

Cena 2: o trem está lotado. Dentro de cada vagão, a física parece ser desafiada constantemente, com pessoas se amontoando até acima da capacidade de cada composição. Pior para as mulheres. Elas sabem que se tornam alvos de homens que aproveitam a situação para realizar toda sorte de abuso, muitas vezes com olhares complacentes de quem está ao redor. Um caso tão crônico e incontrolável que muitas cidades chegaram a adotar a separação de vagões para homens e mulheres.

Os exemplos acima são apenas dois casos, dentre tantos, em que as mulheres ficam vulneráveis ao assédio e ao abuso sexual. E isso tudo dentro do contexto das nossas metrópoles, que acabam oferecendo as situações das quais os assediadores tiram proveito.

Mas, nessas situações, como proceder? Quais as ferramentas que estão à disposição nesses casos? Como mitigar e solucionar o problema?

Se você não aguenta mais ser assediada

O assédio sexual nas ruas é sempre uma experiência traumática. É muito provável que a maioria das pessoas já tenha presenciado uma situação de assédio sexual em algum contexto cotidiano, como o transporte público ou a via pública. Mas uma coisa é certa: eu aposto que ninguém nunca viu alguma mulher reagir positivamente a esse tipo de assédio. Nenhuma mulher gosta de ser cantada na rua ou de ser tocada por um desconhecido. NENHUMA. E a frequência com que o assédio ocorre faz com que as mulheres fiquem cada vez mais traumatizadas e menos propensas a qualquer interação social com os homens. Infelizmente, sofrer assédio sexual é uma perspectiva muito plausível para as mulheres e acaba prejudicando as relações sociais como um todo. Andar com medo pela rua, todos os dias, é de um desgaste psicológico atroz.

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Ok, mas qual é a frequência desse assédio? Acreditem, é MUITO mais frequente do que as pessoas pensam. O aplicativo Sai Pra Lá, criado por Catharina Dória, uma jovem de 17 anos que usou o dinheiro que ela gastaria em sua viagem de formatura para isso, mostra isso de uma forma muito clara. Em dois dias, foram mais de 10 mil downloads e de 12 mil curtidas na página do Facebook. E o dado mais impressionante: mais de DUAS MIL denúncias de assédio sexual. Para vocês terem ideia:  verifiquei os arredores da Avenida Paulista, onde me encontro enquanto escrevo esse texto. Vejam a quantidade de denúncias:

Denúncias de assédio na região da Avenida Paulista entre 3 e 5 de novembro (Fonte: aplicativo Sai Pra Lá)

É bem estarrecedor ver que o assédio sexual às mulheres na rua é algo tão corriqueiro. Conversamos com a Catharina sobre isso, e ela disse que também se assustou com a quantidade de denúncias: “esperávamos umas 100 denúncias de assédio por semana, esse número assustou”, disse a autora.

O aplicativo vem numa linguagem fácil e o registro do assédio é simples: basta falar o endereço e escolher o tipo de assédio sofrido entre os disponíveis (sonoro, visual, físico e outros). Dentro de cada um desses tipos de assédio, existe uma lista de ações abusivas em que a pessoa pode enquadrar o assédio sofrido. E essa parte choca um pouco também: entre os tipos de assédio mais comuns, estão agressões graves, como “falar palavras de baixo calão de cunho sexual”, “encoxar”, “se masturbar na frente da pessoa” ou “mostrar o pinto”. A clareza com que essas informações estão expostas no aplicativo e a quantidade de denúncias são um tapa na cara de quem diz que “não existe assédio”. E, segundo Catharina, também ajudam a expor o problema: “A exposição ajuda a conscientizar porque mostra para o público o assédio que as mulheres realmente sofrem no cotidiano”.

A motivação de Catharina para a confecção do aplicativo, como era de se esperar, foi o acúmulo de diversas situações de assédio sofridas. Um dia, a situação chegou a um limite e a estudante se propôs a criar o app, com apoio da mãe e de alguns amigos. “Foi antes de toda essa discussão sobre violência e assédio, e a hora do lançamento acabou sendo perfeita”, diz ela.

Em relação aos assédios sofridos no cotidiano, Catharina recomenda prudência “em algumas situações é preciso reagir, mas a gente não quer que nenhuma mulher seja agredida por reagir a um assédio. Nesse caso, a denúncia no aplicativo é útil porque já deixa as outras mulheres que passam pelo local atentas”.

Um Pedido

Catharina crê que os dados do Sai Pra Lá podem ser muito úteis para governos e cidadãos lidarem com a questão do assédio, verificando pontos de maior vulnerabilidade e até separando os tipos de agressões (locais em que ocorrem mais agressões físicas e em quais horários, por exemplo). Seria um auxílio e tanto para as secretarias, coordenações e conselhos de políticas para as mulheres espalhados pelo país.

Também existem funcionalidades que a autora quer desenvolver melhor, como a possibilidade de uma descrição mais detalhada dos assédios sofridos, por exemplo. O ideal seria ver grupos que lutam pelo direito das mulheres se engajando por essa causa. Mas também seria bacana ver empresas apoiando e investindo na ideia e em seu potencial de diminuir as ocorrências de assédio sexual nas vias públicas.

O sucesso imediato do aplicativo fez com que o Sai Pra Lá chegasse ao limite da sua capacidade. Nesse post no Facebook, a Catharina está pedindo ajuda para ampliar as bases de dados e viabilizar mais visitas simultâneas:

Gente, infelizmente aconteceu o inesperado.

O sucesso foi tão grande e tão rápido que o app quebrou.

Não temos mais memória e o Google começou a limitar os endereços. Ou seja, pane geral no aplicativo. Ele roda normalmente quando poucas pessoas estão conectadas, porém tivemos um pico de 250 usuários ao mesmo tempo – e foi aí que o problema se instalou.

Agora é torcer para conseguirmos um patrocínio grande ou vários pequenos!

Aplicativos são caros e precisamos de ajuda de pessoas ou empresas que acreditem em um mundo melhor!

Estamos na luta e não vamos desistir tão fácil! Espero que vocês entrem nessa luta conosco!

Catharina Doria e Equipe Sai Pra Lá

‪#‎AjudaOSaiPraLa‬

Então, se você gostou da ideia, entre em contato com a Catharina. As duas principais formas são o e-mail oficial do aplicativo (saipralaapp@gmail.com) ou a página do Facebook. Como tudo aconteceu muito rápido, ela ainda nem sabe direito como arrecadar fundos para viabilizar uma expansão do aplicativo.

A Mudança na Cultura

Como que iniciativas como o Sai Pra Lá, podem atingir as meninas que sofrem assédio na porta da escola ou na ida ao trabalho? Ao registrar cada caso de assédio, apontando a ação e o local, é possível identificar padrões em médio prazo. As mulheres podem evitar certos pontos em que os casos são recorrentes, mas o principal viria do poder público. Com essa base de dados, as autoridades poderiam planejar ações de combate ou prevenção.

AGORA É QUE SÃO ELAS: Como é ser mulher na tecnologia?

Aplicativos como o Sai Pra Lá são ferramentas ótimas para, a médio e longo prazo, mudar a cultura da sociedade em relação ao assédio. Para mostrar que o assédio sexual não é aceitável em hipótese nenhuma. É abusivo e intimidador. Quando essa mensagem começar a chegar a todas as pessoas, é sinal de que a cultura começou a mudar de verdade.

O fato é que a própria discussão sobre violência e assédio é, em si, alentadora, apesar das resistências de grupos conservadores ou declaradamente machistas. O fato de as demandas femininas terem entrado na pauta de discussões relevantes da sociedade é irreversível. E pode ser o primeiro passo para que, em alguns anos, tenhamos cidades em que as mulheres não precisem mais ficar tão temerosas quando saírem nas ruas.

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Serviço: o que fazer se você já sofreu algum tipo de violência

A Lei Maria da Penha foi uma enorme inovação no combate à violência contra a mulher nos últimos anos. Ao enquadrar o agressor criminalmente de maneira distinta, colaborou para a diminuição da impunidade em agressões domésticas. No entanto, nem tudo são flores. Em geral, os agressores das mulheres são pais, maridos ou filhos. A relação de interdependência faz com que a denúncia seja retirada em 90% dos casos. Foi isso que motivou o STF a decidir, em 2012, que a ação contra o agressor que se enquadra na Lei Maria da Penha continue mesmo sem a denúncia da vítima. Mas, para isso, é necessária a denúncia de um agente externo – um parente ou vizinho, por exemplo.

Existem dois tipos de estruturas que ajudam na questão da violência e dos abusos. A primeira delas é a Delegacia da Mulher (os endereços das delegacias do município de São Paulo estão aqui). É muito importante que as mulheres que sofreram algum tipo de violência façam as denúncias nessas delegacias e não nas delegacias comuns: além da especialidade no assunto, que confere maior qualidade ao atendimento, as delegacias da mulher em geral contam com mais policiais femininas que as outras delegacias. Isso parece irrelevante, à princípio, mas mulheres agredidas por homens em geral ficam menos intimidadas quando descrevem o ocorrido para outras mulheres.

A outra estrutura de atendimento é de assistência social: os Creas (Centros de Referência Especializados em Assistência Social). Esses centros oferecem assistência não apenas para quem sofreu violência física, mas para todo tipo de violência. O objetivo é tentar reverter a situação e amenizar o trauma sofrido, ajudando a pessoa a retomar o convívio social. O encaminhamento, em geral, é feito pelos Cras (Centros Referenciados de Assistência Social) ou por outros equipamentos públicos que detectem a situação de vulnerabilidade. Os endereços em São Paulo são esses.