O que é?  Complete a frase: “Só no Brasil que…” Virão dezenas de coisas que nós achamos que só acontecem ou existem nesta Terra de Vera Cruz. Mas felizmente, ou infelizmente, temos muito em comum com o resto do mundo.  Uma dessas coisas é a presença maciça dos carros em nossas vidas. Não é só por aqui que tem muito automóvel e que há uma tensão crescente entre ciclistas e motoristas.

Danilo Cersosimo estreou por aqui com  um texto bem interessante sobre a falsa oposição entre carro e bicicleta. Neste texto, ele atravessa o mundo para contar como alguns países da Ásia têm lidado com os impactos de seu robusto mercado automobilístico (e bota robusto nisso). Então ele explica as intervenções e propostas para amenizar ou resolver os problemas. Hora de pegar o passaporte, pessoal.

O próximo bilhão de carros

Em 2010, o número de veículos em uso no planeta ultrapassou a marca de 1 bilhão de unidades, de acordo com a Wards, consultoria especializada em informações estratégicas para o mercado automobilístico. Uma grande parte deste volume está na Ásia –  mais especificamente, na China.

Essa marca foi simbólica para todos que, de alguma maneira, estudam ou trabalham com o tema (como eu). O galopante crescimento econômico chinês viu o número de carros em suas ruas crescer em 27,5%.  De acordo com as consultorias especializadas, em 2010 os chineses compraram metade de todos os veículos vendidos no mundo naquele ano.

Segundo dados do governo chinês , em 2010 havia 85 milhões de automóveis de passeio no país, com 144 milhões de motoristas habilitados. Quatro anos depois, esses índices impressionam ainda mais. Em 2014, a China viu sua frota de automóveis particulares crescer em 17 milhões de unidades, atingindo a marca de 154 milhões no país. Isso sem contar ônibus, caminhões e outros veículos motorizados. Há na China, hoje, mais carros do que motocicletas.

Os números são superlativos e, como esperado com uma frota veicular deste tamanho, alguns problemas ganharam (ainda mais) recorrência. Os engarrafamentos, a poluição do ar e o número de acidentes envolvendo automóveis foram – e continuam sendo – alguns deles. A poluição em Pequim, capital da China, é tão grande que está ficando difícil atrair profissionais estrangeiros para lá.

Avenida Paulista vista do alto, com a ciclovia no meio (foto: Leandro Beguoci)

Avenida Paulista vista do alto, com a ciclovia no meio (foto: Leandro Beguoci)

Apesar das estatísticas impressionantes, ainda há muito mercado a ser explorado nos países em desenvolvimento. China, Indonésia, Índia, entre outros, ainda verão suas classes médias crescerem e pedirem mais e melhores itens de consumo. A posse de automóveis em nações com esse perfil deve aumentar consideravelmente nos próximos anos. Afinal, o modelo de desenvolvimento e o estilo de vida, em vários desses lugares, ainda é muito apoiado em carros.

Se esse for o caminho, será difícil mudar os pilares do desenvolvimento econômico, do planejamento urbano e o modo de vida dessas sociedades no curto ou no médio prazo. Essa é uma reflexão importante também no Brasil, país cuja economia é bastante dependente da indústria automobilística e de sua cadeia produtiva.

No entanto, há bons exemplos de países asiáticos. Eles souberam amenizar os impactos tanto por meio de medidas restritivas quanto com investimentos em outros meios de transporte. Em todos esses casos, o carro não foi banido do cenário urbano ou da vida das pessoas, mas ganhou outra função – e passou a exercer outro papel.

O dilema japonês

A Segunda Guerra Mundial transformou a economia do Japão. Para dar conta do esforço de batalha, a economia ficou mais diversificada e sofisticada. Muito do conhecimento adquirido naquele momento pôde ser transferido para o período de paz pós-1945 – em que pese o longo e penoso caminho que o país precisou percorrer para se recuperar dos estragos causados pelas batalhas e por duas bombas atômicas. No que tange à indústria automobilística, 10 das 11 montadoras japonesas do pós-guerra eram oriundas do período da guerra – apenas a Honda surgiu depois.

A destruição da economia japonesa por conta da guerra e a necessidade de reconstruir o país praticamente do zero abriram uma janela de oportunidade. O Japão teve de criar novas tecnologias e novos métodos empresariais. Os acordos internacionais de comércio e cooperação com o mundo ocidental, especialmente os EUA, deram impulso para o milagre que transformaria um cenário de destruição em uma das maiores economias do planeta.

O processo de reconstrução do país se consolidou no início dos anos 60 e contemplou inúmeros investimentos na indústria, em inovação, tecnologia, educação e em infraestrutura. O livro “Uma História Moderna do Japão” mostra como o país passou por um dos  maiores processos de modernização da história do mundo.

Rua dos Pinheiros aberta a pedestres, em São Paulo (foto: Leandro Beguoci)

Rua dos Pinheiros aberta a pedestres, em São Paulo (foto: Leandro Beguoci)

As transformações não foram apenas tecnológicas ou estruturais. Elas foram também culturais. Como em qualquer outro país em desenvolvimento, o fortalecimento da economia trouxe novos anseios de consumo à população, e o automóvel era um deles. Foi assim na Inglaterra depois da Revolução Industrial, nos EUA depois do Fordismo, na China dos últimos 30 anos e no Brasil depois do Real e durante o governo Lula.

Para fomentar o boom econômico, o governo japonês incentivou a população a comprar carros. Essa medida seria imitada por muitos países ao longo das décadas – é só acompanhar a quantidade de incentivos que o governo brasileiro deu às montadoras nos últimos anos. Economia aquecida, incentivo para a indústria automobilística e investimentos em infraestrutura urbana voltada para o automóvel num país com baixa extensão territorial e dependente da indústria petrolífera, bem… não poderia dar certo.

Assim, o governo japonês se viu forçado a mirar o longo prazo, antecipando sérios problemas que o país enfrentaria caso continuasse apoiado nesse modelo. Basear-se no incentivo à indústria automobilística como o principal estímulo econômico era bom no curto prazo, mas fatal para o futuro do país (e, em segunda instância, para o futuro de suas cidades e das pessoas).

Como enfrentar o problema?

O início dos anos 60 foi o ponto de virada para o Japão, assim como os últimos três ou quatro anos talvez sejam para a China (ou o para Brasil?). A quebra do paradigma “o automóvel é um dos pilares da economia” veio acompanhada de fortes investimentos em transporte de massa, com um poderoso sistema ferroviário, conectado à malha viária e ao metrô.

Enquanto os EUA, um país continental, continuava promovendo a indústria automobilística e fomentando cada vez mais a cultura do carro (os anos 50 e 60 foram prodigiosos em associar a juventude do pós-guerra ao status do automóvel), o Japão iniciou uma jornada na direção oposta, tornando os carros mais caros e difíceis de usar.

O Japão criou medidas restritivas, aumentou impostos, ergueu pedágios e dificultou os exames para obtenção de licença de motorista.

Para evitar a explosão interna, o país começou a espalhar seus carros para o mundo.  O Japão ainda tem muitos carros por habitante, mas possui um dos menores índices entre os países desenvolvidos.  Depois dessas medidas, a indústria automobilística japonesa continuou muito forte e lucrativa, explorando o mercado americano e os mercados emergentes, como a China e o Brasil. Mas esse é papo para outro texto.

Do Japão para Singapura 

Singapura, uma rica cidade-estado encravada numa das pontas do território malásio, encarou a mesma situação. O país viveu um forte crescimento econômico entre os anos 70 e 80, quando deixou de ser uma economia basicamente rural. Assim como o Japão, seu território é pouco extenso – é menor do que a extensão da cidade de São Paulo. A urbanização intensa colocou o país em uma situação extrema. Singapura foi obrigada a implementar pedágio urbano para carros – o que fez dela a primeira cidade no mundo a adotar essa medida.

Atualmente, o uso do automóvel na cidade é bastante reduzido (assim como os limites de velocidade) e o pedágio urbano é cobrado por meio de um sistema inteligente chamado ERP, que calcula o valor a ser pago de acordo com a distância percorrida dentro de determinadas faixas de horário.

O pedágio urbano implantado por Singapura foi um sucesso e o conceito foi importado por cidades como Londres e Estocolmo. O tema também vem sendo discutido em São Paulo e Xangai, por exemplo.

Os próximos passos

Quando a gente olha para cada um desses exemplos, percebe uma tendência clara. Não se trata de uma guerra aos carros. Trata-se de repensar o papel do automóvel em nossa sociedade, bem como repensar políticas públicas de mobilidade urbana e o (re)desenho das nossas cidades. O nó não é abandonar os carros – mas usá-los bem.

Tornar o uso do automóvel difícil e o uso de outros meios mais fácil são medidas que foram testadas e adotadas em países como o Japão – e funcionaram! Porém, não dá para achar que existe uma solução mágica para tudo. Cada país tem uma realidade, uma cultura – e uma relação com o automóvel.

O importante é pensar na melhor solução para cada realidade – inclusive dentro do mesmo país. Medidas úteis em São Paulo, que tem ônibus e metrô, podem ser altamente ineficientes em Campinas, no interior do Estado. São cidades separadas por 100 quilômetros e modelos diferentes de mobilidade.

Há alternativas relativamente baratas para melhorar a qualidade de vida nas cidades. Medidas impopulares de início podem se provar exitosas no longo prazo. É preciso que o assunto seja cada vez mais debatido e que o diálogo esteja cada vez mais aberto – seja aqui ou na China. O crescimento econômico, fundamental para qualquer país, especialmente os países em desenvolvimento, deve se dar de maneira sustentável e equilibrada.

A transição para cidades mais sustentáveis deve ser cuidadosamente planejada, sem que isso signifique morosidade. Mudar é possível. E mudar rápido também.