O que?
A cidade não consiste só na região central, ou nos centros abastados dos bairros e municípios mais afastados. A cidade também é a periferia. E a periferia, de maneira contraditória, recebe uma parte muito pequena dos investimentos governamentais, apesar de ter a maior parte da população. A instalação de equipamentos públicos de excelência nessa região pode ser um primeiro passo para a transformação da realidade desses lugares.
Os dois lados do Córrego do Oratório
Sempre morei perto da divisa entre Santo André e São Paulo, do lado andreense. Isso fez com que eu vivesse sempre em contato com gente que mora ali, na borda da Zona Leste, região historicamente negligenciada pelo poder público. De funcionários do supermercado em frente à casa dos meus pais a membros da igreja que minha família frequentava, a convivência com o pessoal que morava na Zona Leste era intensa. E viver nessas regiões “de fronteira” acaba ampliando a sua visão de mundo, porque você começa a se perguntar: qual é o sentido de tudo ser tão diferente do outro lado do córrego se tudo faz parte da mesma conurbação?
A questão é que é preciso falar sobre essas regiões “de borda”, onde os investimentos públicos historicamente não chegam, carentes de equipamentos públicos de educação e de saúde, de regularização fundiária, de mecanismos adequados de transporte e de meios de promoção de qualidade de vida para as pessoas. Em um formato mais técnico, vulnerabilidade social pode ser definida assim:
O conceito de vulnerabilidade social se refere às situações em que agentes ou instituições não dominam um conjunto amplo de recursos socialmente produzidos que lhes permitiriam fazer frente às forças e circunstâncias da sociedade que determinam suas vidas; aproveitar as estruturas de oportunidade criadas pelo mercado, Estado e pela sociedade; tomar decisões voluntárias para satisfazer suas necessidades, desenvolver suas potencialidades e realizar seus projetos. Sem esses recursos, agentes e instituições tornam-se vulneráveis a riscos de naturezas diversas, como os econômicos, sociais, culturais, ambientais, etc (Cenpec, 2011, p. 25)
O próprio relatório do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) aponta os efeitos dessa vulnerabilidade nas escolas: “As duas conclusões centrais dessa pesquisa nos levam ao estabelecimento de uma hipótese geral sobre as contribuições escolares na produção do efeito do território. Nossos dados e sua análise sugerem que o modelo institucional que orienta as escolas não está preparado para se relacionar com territórios de alta vulnerabilidade social. A crise de inadequação do modelo escolar parece se manifestar sobretudo no EF2 (Ensino Fundamental 2). Contudo, tudo indica que o colapso é de um modelo institucional.” (Cenpec, 2011, p. 12)
O exemplo dos CEUs
Esse conceito de território de alta vulnerabilidade, consolidado na última década, tem guiado algumas políticas públicas nessas áreas. A mais notória delas é a dos CEUs (Centros Educacionais Unificados), implantados em São Paulo, inicialmente . Esse modelo foi criado pela então prefeita Marta Suplicy em 2002 e replicado pelas administrações posteriores do município, e também por alguns municípios no entorno, como Guarulhos, por exemplo. Qual a lógica do CEU? Criar uma opção educacional de qualidade para as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade e um centro de atividades em regiões onde essas opções de lazer não existem.
Por que é importante fazer isso? Porque a urbanização das periferias da maioria das grandes cidades brasileiras foi feita sem nenhum planejamento: as pessoas chegavam aos bairros antes de qualquer serviço público (já falamos sobre isso aqui). Isso fez com que parte expressiva dos imóveis nessas áreas fosse irregular. Para ter uma ideia do tamanho do problema, em 2013, 206 mil imóveis estavam em situação irregular só no ABC paulista. Alguns programas, como o Cidade Legal, do governo do estado de São Paulo, tentam mitigar esse problema, sem muito sucesso. De acordo com a pesquisadora Helga Canedo, que abordou o tema em seu mestrado, “a avaliação do Programa Cidade Legal identificou a necessidade de rever o desenho deste Programa, visto que ele pouco contribui para a melhoria das condições habitacionais e urbanas dos assentamentos precários e para a irregularidade urbana existente em seu território. Sua atuação, voltada para o licenciamento urbanístico e ambiental no âmbito estadual, caminha em direção contrária à descentralização alcançada pelos municípios e aos avanços recentes das legislações federais voltadas para a regularização fundiária de interesse social”.
Em 2009, participei de um evento sobre os CEUs promovido pela prefeitura de São Paulo. A então secretária adjunta da educação, Célia Falótico, explicou o modelo de funcionamento dos CEUs e as limitações para o crescimento no número desses equipamentos. Na época, foi fixado um limite informal de 45 unidades devido aos altos custos de manutenção e a um problema que tem origem na própria questão fundiária: começou a ficar difícil achar terrenos para novas unidades dos CEUs nas periferias densamente povoada. Para exemplificar, ela citou o caso do CEU do Capão Redondo, construído na única área da região que não estava tomada por moradias (regulares ou irregulares).
Além disso, alguns dos CEUs foram instalados em terrenos de interesse ambiental, também com para preservar os mananciais dessas áreas vulneráveis, normalmente prejudicados pela urbanização sem planejamento. É o que esclarece o arquiteto Renato Anelli, em artigo publicado na época da inauguração das primeiras unidades: “As implantações desenvolvidas em algumas áreas de nascentes resultam em projetos que exploram a relação com a paisagem dentro da tradição moderna brasileira. Os CEU Navegantes e CEU Três Lagos situam-se junto a cabeceiras da área de mananciais do principal reservatório de água de São Paulo, configurando um claro limite entre urbano e área de interesse ambiental”.
Para entender melhor o contexto da instalação dos CEUs, o mapa com a localização deles na cidade de São Paulo está aqui. E se você quiser visitar algum deles, a lista de endereços é essa.
Só que os CEUs não resolvem todos os problemas da população. São um centro de educação, cultura e lazer. O público-alvo da iniciativa é a população mais jovem. O que é ótimo, visto que, sem opções ou expectativas melhores, muitos desses jovens em locais vulneráveis acabam atraídos pelo crime. Mas existem outros públicos-alvo nesses locais, que demandam outras iniciativas.
O Papel dos CICs
A Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo tem uma iniciativa para preencher essa lacuna em locais vulneráveis: os CICs (Centros de Integração da Cidadania). A intenção, segundo o próprio governo, é “levar para as regiões mais remotas das cidades diversos serviços públicos essenciais à garantia dos direitos básicos, cidadania e acesso à Justiça”.
E como fazer isso? Concentrando um monte de serviços em um local só, a maioria deles em parceria com a prefeitura. A ideia de “central de serviços” se aplica a um monte de serviços públicos e está presente em estruturas tão distintas quanto a do Poupatempo e a do Detran, mas nos CICs as pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade tem um equipamento que atende à maioria das suas necessidades. Semana passada eu visitei a unidade de Ferraz de Vasconcelos e pude perceber isso na prática.
Se a pessoa precisa de benefícios do governo federal, pode requerer sua inclusão no Bolsa-Família. Se precisa de um emprego, pode se cadastrar em uma das vagas oferecidas pelo PAT (Posto de Atendimento ao Trabalhador). Se precisa se aposentar ou dar entrada no seguro-desemprego, pode ir ao posto do INSS. Se sofreu algum tipo de violência, pode ir ao Creas (Centros de Referência Especializados em Assistência Social). Se quer uma opção de leitura para as crianças, pode deixá-las na biblioteca infantil. Se tem algum familiar com dependência química, pode consultar os psicólogos do Recomeço Família (programa do governo estadual contra a dependência química). Se precisa de qualificação profissional, pode se cadastrar em um dos cursos oferecidos pela prefeitura, em especialidades como moda e costura, cabeleireiro ou manicure/pedicure. Se precisa terminar o ensino fundamental ou médio, pode se matricular em uma das turmas de EJA (Ensino de Jovens e Adultos) que a prefeitura oferece. Tudo em um lugar só.
Em locais vulneráveis, equipamentos como esses acabam sendo incorporados à rotina da população. Em Ferraz de Vasconcelos, somando todos os serviços, são realizados cerca de 28 mil atendimentos ao mês. Para uma cidade de pouco mais de 100 mil habitantes, de acordo com o censo de 2010, é muita coisa.
Nas outras unidades, o padrão de serviços é parecido. Os gestores da unidade tem liberdade para firmar novos convênios e para excluir serviços que não tem procura. Isso dá maior autonomia para que o CIC se adapte às realidades locais de forma mais efetiva, atendendo a necessidade específica da população do entorno.
É notório que existem problemas também. A verba destinada para a manutenção dos equipamentos não é grande, e isso limita algumas ações. Além disso, a agregação de novos serviços no local depende muito da capacidade de negociação do gestor: se ele não conseguir parceria com atores locais importante, como a prefeitura, os serviços podem acabar não atendendo adequadamente à população.
Se você tiver curiosidade ou precisar dos serviços, a lista de endereços dos CICs está aqui.
Conclusão
Os equipamentos instalados em áreas vulneráveis ainda são raros e recentes, além de não atenderem a todas as demandas desses lugares, fragilizados pela urbanização sem planejamento e pela ausência histórica de serviços básicos por parte dos governos. No entanto, esses equipamentos também não podem ser vistos como “ilhas de excelência em meio ao caos”. Quem esclareceu isso foi Edson Fasano, que atuou na coordenação da implantação dos CEUs em São Paulo, em entrevista de 2010: “O CEU nunca teve por princípio ser uma ilha de excelência, por que não se fechava nele mesmo. Era um polo, era um polo irradiador, era um polo que estava… Em que a estruturação do seu projeto dependia da relação que se estabelecia com as outras unidades. A outra grande inovação, é que traz a integração das secretarias — cultura, esporte, educação. Integra também a secretaria de saúde e traz o poder local, que é o poder da subprefeitura a se movimentar. Por quê? Porque onde estão os coordenadores destas áreas? Na subprefeitura. Na medida em que os programas e os projetos se integram, esses coordenadores têm que sentar juntos, eles têm que planejar, eles têm que vencer a fragmentação e construir uma dimensão mais complexa, para olhar a política pública “.
Essa integração entre diferentes órgãos da administração pública em um único equipamento também é característica dos CICs. É a característica principal desses equipamentos públicos instalados em locais de alta vulnerabilidade. E uma chave para melhorar os serviços em geral: o cidadão quer gastar o mínimo de tempo possível indo atrás de serviços públicos e ter a máxima estrutura possível para desfrutar das opções de esporte, cultura e lazer que a cidade pode oferecer. Especialmente em locais historicamente negligenciados, em que as pessoas construíram malhas urbanas com dinâmicas próprias antes do estado oferecer o mínimo de viabilidade para elas.
Mas já é um alento saber que, depois de tanto tempo, o poder público finalmente anda se preocupando com esses lugares. Já dá pra imaginar um futuro um pouco melhor, mesmo sabendo que ainda precisam ser resolvidos muitos problemas bem sérios nesses locais.