Sobre o que é este texto? O Leonardo Rossatto é especialista em cidades e tecnologia. Ele explica exatamente de onde veio o conceito de cidades inteligentes, porque ele é parente das cidades globais, e a relação entre o desejo de ter Olimpíadas e os recentes planos de colocar sensores nas cidades.
A rotina descoordenada
Sou morador de Santo André, uma agradável cidade industrial na região metropolitana de São Paulo (ela já foi mais industrial, mas isso é outro papo). De segunda a sexta, faço o mesmo caminho para o trabalho: ando um trecho de carro, com minha esposa, que me deixa na estação de trem. Pego o trem e depois o metrô, até chegar aos arredores da avenida Paulista, onde trabalho.
Nesse trajeto, existem muitos problemas: os semáforos entre a minha casa e a estação de trem não têm qualquer tipo de ordenamento. Verdes e vermelhos se intercalam, atrasando minha viagem e o caminho de todas as outras pessoas. Os trens sofrem paralisações com frequência, e elas não são comunicadas na hora pela empresa responsável. É mais confiável conferir as manifestações das pessoas pelo Twitter, buscando os tweets em tempo real com termos como “CPTM”, a companhia de trens da região metropolitana de São Paulo. O mesmo ocorre com o Metrô, em menor escala.
Tudo isso deixa uma sensação óbvia: a de que, com um pouco de inteligência, dá para melhorar a gestão de todos esses equipamentos públicos de uso cotidiano. Com a tecnologia atual, é possível interligar os sistemas de gestão de trânsito e de transportes públicos, mitigando o impacto de congestionamentos e melhorando a qualidade dos serviços, só pra ficar na questão de mobilidade.
Esse conjunto de tecnologias integradas pela informática, aplicados à gestão urbana, ajuda a entender o conceito de “cidade inteligente”.
De onde veio?
O termo “cidade inteligente”, traduzido do seu correspondente inglês “smart city”, fala justamente da quantidade de tecnologia integrada e utilizada para facilitar a vida do cidadão. É possível dizer que o conceito dá um passo além diante de um termo anterior, bastante utilizado na década de 90, quando a internet engatinhava. Naquela época, falávamos de cidades digitais, quando os espaços urbanos estavam recebendo suas primeiras camadas de tecnologia.
Sobre o conceito de cidade inteligente em específico, a definição do professor André Lemos, dada num texto sobre o tema divulgado em 2013, é muito boa:
“Cidade inteligente refere-se a processos informatizados sensíveis ao contexto, lidando com um gigantesco volume de dados (Big Data), redes em nuvens e comunicação autônoma entre diversos objetos (Internet das Coisas). Inteligente aqui é sinônimo de uma cidade na qual tudo é sensível ao ambiente e produz, consome e distribui um grande número de informações em tempo real”
Reparem bem que o conceito cunhado pelo professor André Lemos diz respeito a uma estrutura criada de acordo com um contexto e para um propósito específico. E isso faz com que seja necessário separar em dois o conceito de “cidade inteligente”.
De um lado existem as cidades concebidas dessa forma, tais como as cidades inteligentes indianas projetadas pelo governo de Narendra Modi e acusadas de serem instrumento de apartheid social no país. Outros exemplos são Songdo, na Coréia do Sul, Masdar, nos Emirados Árabes Unidos, e Chengdu, na China. Essas cidades recebem investimentos enormes para servirem como uma espécie de laboratório urbano, criando práticas de gestão tecnológica de sistemas urbanos que fatalmente serão replicadas por outros locais.
Esse tipo de iniciativa traz benefícios e problemas. Quando uma cidade inteligente é criada do zero, passa por cima do contexto histórico de uma região. E esse tipo de solução não é algo que surgiu com as cidades inteligentes. Na década de 1950, o centro financeiro de La Défense, na extremidade ocidental de Paris, foi projetado para aumentar a relevância da França no cenário europeu. Na década de 90, o distrito de Pudong, em Shangai, foi projetado no contexto das “cidades globais”, para aumentar a inserção chinesa no comércio internacional.
Então, para voltarmos ao mundo real, aquele em que a história não é ignorada e montanhas de dinheiro público não são utilizadas para a construção de novas cidades, é necessário inserir a idéia das cidades inteligentes nos locais que já existem, em que as pessoas vivem suas vidas, com problemas reais e questões que na maioria das vezes são urgentes demais para esperar a construção de uma nova localidade do zero.
Nesse sentido, uma “cidade inteligente” é aquela que utiliza mais recursos tecnológicos de vanguarda para a gestão urbana: big data como instrumento para enxergar os gargalos da cidade, informações na nuvem atualizadas em tempo real, sistemas integrados de informação. Tudo ambientado de forma local, sensível às mudanças circunstanciais que ocorrem nesse âmbito.
Transformar o conceito de “cidade inteligente” em algo concreto, como paradigma para a gestão urbana de locais já existentes, é o significado mais realista do termo. O último livro dos pesquisadores sobre urbanismo Tom Dassen e Maarten Hajer, lançado em abril, é uma bela contribuição para o debate e tem um nome bem sugestivo: Smart About Cities. Porque, a rigor, o assunto não é a “cidade inteligente”, mas a “inteligência sobre cidades”.
Da cidade global à cidade inteligente
A idéia de Cidades Inteligentes produz deslumbramento, inclusive entre acadêmicos e gestores públicos. Não é a primeira vez, e temos muito a aprender com algo que aconteceu alguns anos atrás. Na década de 90, houve um grande frisson com a ideia de “cidades globais”, conceito nascido das pesquisas da socióloga holandesa Saskia Sassen. As cidades deveriam se modernizar, se preparando para a globalização e para grandes eventos.
Foi nessa época que muitas administrações públicas ao redor do mundo começaram a investir em infraestruturas de modernização que remetem a uma cidade globalizada: centros de convenção, edifícios inteligentes e infraestrutura moderna, feita sob medida para atrair investimentos. Tudo em uma lógica de que cidades são concorrentes umas das outras. Elas concorreriam pela atração de eventos mundialmente relevantes e por investimentos das grandes empresas.
Se isso te lembrou dos investimentos massivos em Copas do Mundo e em Olimpíadas, bem, não é por acaso. O contexto das cidades globais está totalmente ligado a esses grandes eventos, que expõem cidades e países mundo afora. Vamos nos aprofundar no caso das Copas do Mundo.
A concorrência entre as cidades
Antes da Copa do Mundo realizada nos EUA, em 1994, não existia um caderno de exigências rigoroso por parte da FIFA, e nem a exploração de marketing excessiva em torno dos estádios. Prova disso é o fato de que a Copa de 1982, disputada na Espanha, teve jogos em 17 estádios, alguns sem nenhuma intervenção estatal prévia. Em 1986, o México organizou a Copa do Mundo em três anos, após a desistência da Colômbia, que havia sido escolhida como país-sede da Copa do Mundo de futebol no Congresso da FIFA de 1974. O nosso vizinho desistiu de sediar a Copa do Mundo após as eleições presidenciais de 1982 no país.
Em 1988, os Estados Unidos foram escolhidos pela FIFA para sediar a Copa do Mundo de futebol de 1994. No entanto, não existia futebol profissional nos EUA no início da década de 90. Para sediar a Copa do Mundo, que deveria apresentar o esporte para os EUA, foram necessários enormes investimentos em infraestrutura, seja na construção ou na adaptação de estádios. A Copa do Mundo de 1994 difundiu o esporte para o público americano a ponto de a Major League Soccer, a liga de futebol norte-americana fundada em 1996, ser relativamente bem sucedida e atrair um público razoável aos estádios (mais que o Campeonato Brasileiro, atualmente).
Com o sucesso da Copa do Mundo em solo norte americano, os investimentos vultuosos tornaram-se um padrão exigido pela FIFA para as Copas do Mundo seguintes. A FIFA compreendeu rapidamente que era dona de um evento global, e que, inserida na lógica da concorrência entre lugares, poderia aumentar as exigências a respeito, de forma a maximizar seus lucros. A concorrência, nessas escolhas, passou a se dar em dois momentos: o primeiro, entre os países, para que fosse definida a sede da competição. E o segundo entre as cidades do país escolhido, para a definição das sedes dos jogos.
Esse modelo foi exitoso nas Copas de 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, disputadas respectivamente na França, no Japão e na Coréia do Sul, na Alemanha, na África do Sul e no Brasil. No entanto, esse modelo é cada vez mais insustentável, por um monte de motivos: em muitos casos, os investimentos não geram o retorno prometido para a população, os processos de seleção não são corretos, para dizer o mínimo, e essa lógica de eventos de custo exorbitante cada vez mais atrai regimes controversos que querem utilizar esses eventos para fazer marketing institucional, o que é notório nos casos da Copa da Rússia, em 2018, e na do Qatar, em 2022.
O COI (Comitê Olímpico Internacional) tem lidado com o mesmo tipo de problema. No dia 31 de julho, foi escolhida a sede da Olimpíada de Inverno de 2022. Oslo, Estocolmo, Cracóvia, St. Moritz e Munique desistiram da disputa porque a população dessas cidades era contrária ao volume de investimentos para o evento. Lviv desistiu depois que a Ucrânia entrou em guerra civil. Só sobraram Pequim e Almaty, que não estão em países democráticos e com tradição nos jogos de inverno. Não à toa, o COI já está tomando iniciativas para reduzir os custos do evento. Pequim venceu, mas por absoluta falta de opção.
Por que a volta olímpica?
Mas se o texto é sobre cidades inteligentes, por que estamos falando sobre cidades globais? Porque a discussão séria sobre cidades inteligentes surgiu justamente da crítica às cidades globais. O deslumbramento com as cidades globais, na década de 90, produziu críticas ferozes por parte de muitos pesquisadores urbanos (Ermínia Maricato e Henri Acserald são exemplos brasileiros notórios). Afinal, a cidade global aumentava as desigualdades e a segregação urbana. Em resposta a essas críticas e com as soluções tecnológicas desenvolvidas nos últimos anos, desenvolveu-se essa concepção de uma cidade com serviços intermediados pela tecnologia, em que as políticas públicas são alimentadas pelos dados recebidos em tempo real. É a ideia de cidade inteligente para locais que já têm uma história prévia.
E por que essa ideia é importante? Porque ela ajuda a construir uma cidade melhor, mais criativa, com soluções para os problemas imediatos das pessoas. Uma gestão integrada, amparada pela tecnologia. É notório o potencial que os equipamentos tecnológicos têm de transformar a cidade, possibilitando com que seu funcionamento seja mais sofisticado e eficiente, de forma a aproveitar ao máximo o seu potencial de criatividade.
E é aí que entra a população, além do poder público e dos agentes de mercado. E também o Outra Cidade, é claro. Porque ninguém merece ficar preso no trânsito porque as luzes são menos coordenadas do que uma árvore de Natal.
Quem é Leonardo Rossatto? Nascido e criado no A do ABC paulista. Graduado em Ciências Sociais, pela Unicamp, Mestre em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC, pesquisando as relações entre sociedade, território e as novas tecnologias de informação. Especialista em Políticas Públicas no governo do Estado de São Paulo.