O que é? Para um grande número de brasileiros, ter um lugar para viver não é um fato da natureza. Mudar de imóvel, menos ainda. São muitas e muitas pessoas que, por mais que trabalhem, dificilmente vão conseguir comprar ou alugar um teto para chamar de seu – a menos que tenham alguma ajuda. É por isso que cidades como o Rio de Janeiro estão implementando programas de habitação social. E também é por essa razão que a prefeitura de São Paulo está tentando encontrar espaço na metrópole para implementar medidas semelhantes. Leonardo Rossatto explica o problema, diz como ele já foi amenizado e se lembra de Dentinho – um símbolo pessoal do colapso das políticas públicas de moradia.
Dentinho e o futebol
Durante a infância e a adolescência, eu passava os dias na rua jogando futebol, taco ou fazendo qualquer outra coisa, especialmente nas férias. A casa dos meus pais fica numa rua com movimento razoável de veículos, mas não o bastante para nos impedir de usá-la. Ali, naquele pedaço da cidade, nós nos reuníamos para jogar, brincar. A maior parte do pessoal morava naquele quarteirão.
Era uma época em que crianças iam e vinham. Algumas apareciam, depois sumiam. Quando eu tinha uns 13 anos, apareceu um menino que aparentava ter uns 8 anos. Ele chegou com o irmão, que aparentava ter uns 5. Como o mais velho tinha os dentes bem para fora, começamos a chamá-lo de “Dentinho”. O irmão dele? Bem, era o “irmão do Dentinho”.
Depois de algum tempo, ele nos contou que tinha 11 anos e o irmão, 8. Contou também que morava em uma casa na rua de cima. Um dia, nós, os meninos, fomos visitá-los. Na época, os vidros quebrados e a falta de iluminação não pareciam estranhos. Nosso bairro não era rico. Boa parte das casas era bem antiga, e mal cuidada.
Dentinho e o irmão dele devem ter ficado mais ou menos um ano jogando futebol com a gente. Um dia, percebemos que eles não apareciam há algum tempo. Fomos até a casa onde os irmãos moravam. Era a rotina. Se faltava alguém, nós batíamos na porta para chamá-los. Só que eles não estavam mais lá. Havia um tapume na frente da casa, cobrindo a entrada e o terreno. Depois de algum tempo, a casa foi demolida. Aquele pedaço de terra ficou alguns anos vazio, até alguém comprar e construir outra casa lá.
Os irmãos e o Sarney
A casa onde Dentinho e seu irmão moravam era invadida. No meio dos anos 90, no começo da minha adolescência, isso era bastante comum em bairros de classe média ou de classe média baixa. Era até bastante previsível, em um cenário de crescimento urbano constante nos últimos 60 anos. Em 1950, tínhamos 20 milhões de brasileiros vivendo nas cidades. Em 2010, eram 160 milhões.
No meio da década de 90, a invasão e a moradia irregular eram coisas bem comuns. Por isso é bom relembrar o que aconteceu com a política habitacional brasileira um pouco antes disso.
Durante algum tempo, as políticas de habitação foram centralizadas em Brasília. Mas, em 1986, o presidente José Sarney dissolveu o BNH (Banco Nacional da Habitação). O banco era usado pelo regime militar para financiar a habitação social. Como quase tudo no final do regime militar, o BNH sofreu com a falta de verbas em um cenário de insolvência do país. O Brasil estava quebrado, deu calote da dívida, a inflação era ampla, geral e irrestrita. Caos.
A dissolução do BNH teve dois resultados. A primeira foi o fortalecimento dos municípios nas políticas habitacionais, por meio da política dos mutirões. Ajudou a amenizar o problema, mas fortaleceu o clientelismo. Os prefeitos controlavam as máquinas – e quem era beneficiado por elas. O professor Adauto Lúcio Cardoso resume o período dessa forma:
A atuação do governo Collor na área da habitação, seguindo um padrão que se institucionaliza desde o governo Sarney, foi caracterizada por processos em que os mecanismos de alocação de recursos passaram a obedecer preferencialmente a critérios clientelistas ou ao favorecimento de aliados do governo central. (Fonte: Observatório das Metrópoles, p. 4)
Para piorar o cenário, as políticas de habitação, durante o governo Collor, uniram dois pontos tenebrosos. A corrupção, que já vinha desde a época do BNH, se encontrou com o hábito de começar uma obra, mas não terminá-la. E lá se foi dinheiro do FGTS, gasto de forma irresponsável (para ser educado). As consequências foram catastróficas.
A utilização predatória dos recursos do FGTS, que caracterizou os últimos 2 anos em que Collor esteve no poder, teve consequências graves sobre as possibilidades de expansão do financiamento habitacional, levando à suspensão, por dois anos, de qualquer financiamento, no período subsequente (Fonte: Adauto Lúcio Cardoso, no Observatório das Metrópoles, p. 4)
Com isso, chegamos ao meio da década de 90 em uma situação de tensão social absurda nas grandes metrópoles: não existiam canais de financiamento habitacional para as pessoas mais pobres. Mas o que o FGTS tem a ver com habitação popular? Bem, para isso vamos recorrer ao organograma da política habitacional brasileira:
A política de habitação social é feita basicamente com dois tipos de recursos, do FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social) e os do FGTS. Aliás, não se iludam. A parte feita com “outros fundos” sempre foi mais uma possibilidade do que uma realidade. O FNHIS nem existia no início da década de 90. A lei que o implantou é de 2005. Durante um bom tempo, o FGTS era a fonte quase única de financiamento às habitações de baixa renda, junto com recursos esparsos vindos da União, dos Estados e dos municípios.
Por isso é que moradias irregulares, como as da família de Dentinho, eram extremamente comuns. Foi apenas no governo de Fernando Henrique Cardoso que o financiamento de imóveis populares, via FGTS, voltou a ser feito. E, ainda assim, em um contexto de ajuste fiscal, a passos de tartaruga. Todo esse tempo de indefinição em relação à política habitacional cobrava o seu preço. Alguns, diretos. A família de Dentinho não tinha onde morar. Outros eram indiretos. O índice de homicídios no país, por exemplo, cresceu de forma assustadora entre 1980 e 1995:
Crime, casa e castigo
Mas por que começou a ter tanto assassinato? O que isso tem a ver com moradia? Se a gente pegar aquele primeiro gráfico, o da urbanização, vai ver que, entre 1980 e 1996, os habitantes das cidades do país passaram de 80 para 120 milhões.
Nesse contexto, de política de habitação social débil, quase inexistente, grande parte dessas 40 milhões de pessoas começou a habitar os bolsões de pobreza nas periferias das grandes cidades do país. Lugares sem regularização fundiária, em que o Estado demorou mais para chegar do que os traficantes de drogas. Quando o Estado chegou, não foi por meio de direitos, deveres e serviços. Foi com força policial. Não é por acaso que o rap de grupos como os Racionais MC’s tenham surgido como uma forte expressão da voz da periferia urbana nessa época. Aliás, dê uma olhada nas casas que aparecem logo no começo desse vídeo.
Desde então, muita coisa mudou. O presidente FHC mudou as regras do financiamento imobiliário, aumentando o papel do setor privado e estabelecendo a Caixa Econômica Federal apenas como órgão de financiamento, com acesso aos recursos do FGTS. Lula assumiu e criou a figura da “Habitação Social de Mercado”: o Minha Casa, Minha Vida promoveu o subsídio de habitações por parte do governo para a população de baixa renda, ainda que essas fossem construídas pelo setor privado.
No entanto, a especulação veio junto com o subsídio. O preço dos imóveis subiu bem mais do que a inflação nos últimos anos, de economia em expansão e crédito farto. Com isso, a demanda continuou descolada da oferta. Ao mesmo tempo em que construtoras lançam novos empreendimentos e têm dificuldades para vender, o número de pessoas sem casa também sobe. E daí aumenta a tensão social.
Grupos como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e outras organizações tentam entrar em imóveis vazios. Em seguida vêm os pedidos de reintegração de posse desses espaços na justiça. Esses pedidos, quase sempre, acabam em reintegrações de posse. Independente da posição política de cada um, são sempre cenas tristes e comoventes. Na maior parte das vezes, as pessoas que estão nesses grupos têm quase nada na vida. Afinal, quem correria tantos riscos?
Atualmente, o diagnóstico do Ministério das Cidades em relação ao déficit habitacional no Brasil é esse:
Entre 24 e 28 milhões de brasileiros não têm onde morar ou vivem em condições sub-humanas. Segundo cálculos do Ministério das Cidades, seria necessário construir ou possibilitar a ocupação de pelo menos 6 milhões de moradias para extinguir o atual déficit habitacional brasileiro, problema que atinge principalmente as famílias de baixa renda das regiões metropolitanas, onde o problema é agravado pela falta de áreas livres para a construção, extremamente valorizadas. (Fonte: Agência Brasil)
Mas existem soluções? Sim, existem.
Os caminhos
Uma das soluções é a locação social de imóveis. Como funciona a locação social? O governo aluga imóveis pertencentes a pessoas físicas ou jurídicas, e subloca, de forma subsidiada, esses imóveis para a população mais pobre, por um longo período. A vantagem desse modelo é que ele não implica na compra de um imóvel, que é um investimento inacessível para a maioria das pessoas que utilizam habitações sociais. Por outro lado, isso dá maior insegurança ao locatário. No Brasil, ainda é muito forte a cultura do imóvel como segurança financeira em meio ao caos. Fruto de décadas de inflação e de aberrações como o confisco das poupanças no governo Collor.
Mas existem outros usos caminhos para os programas de locação social de imóveis. Simone Gatti, por exemplo, sugere que a locação social seja um instrumento utilizado pelas famílias de maior vulnerabilidade, especialmente em São Paulo. A pessoa tem um imóvel subsidiado enquanto não pode entrar em programas como o Minha Casa, Minha Vida. É uma forma de promover a inserção social inicial de famílias que, de outra forma, não teriam condições de se manter em uma moradia, e acabariam relegadas às moradias irregulares ou morando nas ruas.
Só que a locação social também não é a única forma de lidar com a questão. Grupos como a Usina – CTAH (Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado) promovem uma abordagem mais proativa do tema, reunindo profissionais de diversas áreas para construir habitações de interesse social em regime de mutirão. Esses grupos reúnem moradores e, em geral, pleiteiam a doação de áreas já ocupadas para a construção de moradias. A própria Usina conta com arquitetos e engenheiros civis que projetam gratuitamente os imóveis e buscam vencer os passos burocráticos para a construção dos imóveis, além de pleitearem verbas do FNHIS (o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, que citamos antes no texto). Além disso, agem em parceria com outros grupos de defesa da moradia, como a UMM (União dos Movimentos de Moradia) e o MTST.
Em 25 anos, a Usina já construiu mais de 5 mil unidades habitacionais, urbanizando e regularizando áreas invadidas e conseguindo novos terrenos. O que diferencia a Usina é a preocupação em ouvir os moradores envolvidos para projetar e construir os imóveis, como fica claro no próprio texto institucional deles:
A USINA CTAH tem atuado no sentido de articular processos que envolvam a capacidade de planejar, projetar e construir pelos próprios trabalhadores, mobilizando fundos públicos em um contexto de luta pelas Reforma Urbana e Agrária.
Além disso, a Usina também acompanha e informa sobre a questão das ocupações, como agentes presentes na discussão do tema. Mas existem problemas: a dependência excessiva de recursos públicos faz com que o grupo fique refém dos governos, o que atrapalha bastante em tempos de ajuste fiscal. De qualquer forma, isso não invalida o papel do grupo como exemplo de atuação na temática da habitação social.
A verba para a construção desses imóveis faz parte de um contexto maior: a do MCMV entidades, que já entregou mais de 50 mil moradias no país para famílias com renda inferior a R$ 1600 por mês. A lógica do MCMV entidades é justamente essa: a da utilização de grupos e movimentos sociais como gestores dos seus próprios programas de habitação, com verbas federais. Isso traz ótimas possibilidades, mas também alguns problemas, como a possibilidade da “responsabilização jurídica dos responsáveis pelos movimentos sociais”, argumenta a pesquisadora Renata Gomes, que analisou o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social em seu mestrado na Faculdade de Direito da USP. Faz sentido. O governo repassa o dinheiro e toda a responsabilidade para um único movimento social. A chance de conflito é grande.
De qualquer forma, a habitação social está hoje em situação muito melhor do que durante os anos 90, mesmo com todos os problemas e limitações. Eu não faço a menor ideia de onde vivem Dentinho, seu irmão e seus pais hoje. Mas, se eles não foram atingidos pela violência das periferias, tenho motivos para acreditar que a família deles deve estar em situação bem melhor do que aquela do meio dos anos 90, em que eles precisaram invadir residências vazias para não morar nas ruas.
No final das contas, famílias como a do Dentinho têm tanto direito quanto eu ou você de morar de forma digna. Todo mundo tem que ter o direito de responder com orgulho o seu endereço, seja ele qual for, quando for abrir uma conta bancária ou preencher um formulário de emprego. Todo mundo tem o direito de ver o correio chegar na porta da sua casa, de ver as contas de luz e de água em nome do pai ou da mãe da família. Todo mundo deveria ter orgulho de responder a pergunta “onde você mora?”.