Por Leão Serva*

Mesmo um motorista boa gente faz muito mal ao mundo. Um violento é ainda pior. E todos os dois fazem um imenso estrago a si mesmos. Afinal, um carro com tudo certo, se comportando conforme as melhores regras e respeitando os direitos dos outros, emite uma quantidade enorme de poluentes, é uma forma completamente irracional de mobilidade (o motor tem que movimentar uma ou duas toneladas para levar uma pessoa, em média, de 80 kg). A maior causa de enfarte no planeta é o congestionamento, a sensação de prisão dentro de uma pequena caixa de metal e vidro.

Todo mundo já viu o infográfico que compara o espaço ocupado para levar 60 pessoas de carro (54 carros, pela média de 1,1 passageiro/carro) à mesma quantidade de pessoas em um ônibus. É impressionante. A cidade de São Paulo tem uma frota de 7 milhões de veículos. Se todos saírem às ruas formarão uma fila de 28 mil km, mais de 46 vezes a distância entre Rio e São Paulo, metade de uma viagem entre Ushuaia e o Alasca pelas estradas que unem o extremo sul ao extremo norte das Américas.

São Paulo tem 17 mil km de ruas e avenidas. Se todos os carros saírem de casa no mesmo dia, não terão espaço para circular. A ideia não é hipotética. Em um feriado prolongado no verão de 2011, quando milhões de pessoas tentaram ir de carro para o litoral, as estradas pararam. Teve gente que levou 17 horas para chegar da Capital a Ubatuba. Pense que muitos ficaram em SP ou foram para outros destinos.

Trânsito na rodovia dos Imigrantes

Trânsito na rodovia dos Imigrantes

Como todo mundo tem direito de ter um carro, ainda mais agora que está barato, é evidente que cenas como aquela podem acontecer cada vez mais frequentemente.

A única solução é restringir o uso do automóvel, com medidas como: interromper a abertura ou construção de pontes, ruas e avenidas; reduzir o número de faixas de circulação para carros; aumentar a oferta de transporte público e dar preferência a sua circulação; incentivar os pedestres e ciclistas com adoção de faixas e ruas exclusivas e seguras, que reduzam ainda mais o espaço destinado aos carros; fechamento de ruas e avenidas; bloqueio de vias expressas e redução de limites de velocidade no trânsito.

Tudo deve começar com o poder público parando de bajular os donos de automóveis, que são a minoria e, mesmo bonzinhos, fazem mal ao planeta e aos seus vizinhos. Eliminar incentivos diretos e indiretos às indústrias automobilísticas. Acabar com o financiamento para carros e motos e usar esse dinheiro para ampliar o transporte público.

“Fodam-se os carros” deve ser o lema da administração pública, não com todas as letras para não ser grosseiro. Mas o sentido tem que ser esse.

Claro que os motoristas vão se irritar, espernear. Mas à medida em que a qualidade de vida melhorar, eles vão se acostumar e até elogiar. O exemplo mais claro é o da implantação do pedágio urbano em Londres: depois de muito irritados, até os motoristas londrinos reconhecem os benefícios. E cada centavo arrecadado é investido diretamente na ampliação da rede de coletivos, sobre trilhos ou pneus. A cidade toda agradece.

Como vão agradecer os paulistanos. Por isso, repita comigo: Fodam-se os carros!

*Leão Serva é jornalista, escritor e coautor do guia ‘Como Viver em SP sem Carro’. É colunista do jornal Folha de S. Paulo, onde atuou também como diretor de Redação. Lançou recentemente o aplicativo SP Sem Carro.

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