O que? Diversas cidades norte-americanas criaram leis para inibir pessoas de morarem nas ruas, mas começam a ser consideradas inconstitucionais pelo Departamento de Justiça federal. Além disso, tais políticas não resolveram os problemas dos sem-teto, o que incentivou um estado a experimentar a ideia de dar moradia a todos.

Problema mais complexo que o imaginado

“Proibido acampar.” Essa regra é uma situação comum nos Estados Unidos. Desde a pequena Manchester (estado de New Hampshire) até São Francisco (Califórnia), várias cidades criaram leis vetando pessoas de acamparem em certas regiões. O objetivo é inibir pessoas sem-teto a ocuparem as ruas, as incentivando a buscar albergues e outros abrigos. A ideia parece nobre, mas o resultado está longe disso. E já começa a criar problemas.

Em agosto, o Departamento de Justiça (DOJ na sigla em inglês) derrubou uma lei da cidade de Boise, Idaho, que criminalizava o ato de dormir em público. De acordo com o órgão, equivalente americano ao Ministério de Justiça, a lei fere a Oitava Emenda, que proíbe “fianças exageradas, nem impostas multas excessivas ou penas cruéis ou incomuns”. Afinal, seria cruel punir alguém por dormir em local público quando não há opção viável.

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O DOJ tomou posição no caso de Boise porque alguns sem-teto que foram detidos por dormir nas ruas entraram na Justiça, mas a interpretação do órgão pode se estender a outras cidades. Por exemplo, Sarasota (Flórida) está sendo contestada nos tribunais pelo mesmo motivo, enquanto São Francisco já se adiantou e dá sinais de que deve rever sua versão da lei.

A questão tem se mostrado mais complexa do que os gestores públicos imaginavam. Não basta haver disponibilidade de abrigo para os moradores de rua, é preciso que eles em si sejam viáveis. Alguns estão localizados em regiões pouco povoadas das cidades, o que obrigariam os sem-teto a caminhar muito para terem onde dormir, se afastando das regiões em que podem procurar emprego ou obter recursos para sobreviver. Outros são ligados a igrejas, que exigem que o visitante frequente os cultos (o que pode ser agressivo para quem segue outra ideologia). E quase todos vetam a entrada de pessoas com problemas de alcoolismo ou que possuem algum animal de estimação, o que também exclui uma parcela significativa dos indivíduos em situação de rua.

Esse cenário explica o caso do Hotel 22, apelido que os ônibus da Linha 22 do sistema de transporte do Condado de Santa Clara (Vale do Silício, região metropolitana de São Francisco). Várias pessoas em situação de rua pegam os veículos todas as noites, aproveitando que se trata da única linha que roda 24 horas por dia na região. Com isso, têm local para dormir em relativa segurança e dentro da lei, ainda que tenham de lidar com a iluminação dentro do veículo e com o chacoalhar natural do coletivo.

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A vida dos moradores de rua tem se tornado ainda mais difícil nos últimos tempos pela adoção de medidas menores que também afetam seu cotidiano. Cidades vetam o uso de carrinho de supermercado nas ruas, deixar objetos pessoas na rua, dormir em carros ou dar comida a sem-teto. O mobiliário urbano também tem atrapalhado, com bancos de metrô com braço para quem ficar sentado (o que impede uma pessoa de se deitar) e cestos de lixo que dificultam o acesso de pessoas que tentarem pegar latas de bebida e outros materiais recicláveis (sustento de muitos moradores de rua) que foram descartados.

Aos poucos, algumas cidades percebem que há um dilema. Impedir ou dificultar que as pessoas vivam nas ruas não tem acabado com os moradores de rua simplesmente porque faltam opções para esses indivíduos mudarem sua realidade. Isso motivou o governo de Utah a criar a “Força-Tarefa dos Moradores de Rua”, que reduziu o número de sem-teto do estado de quase 2 mil em 2005 para 178 em 2015.

“É uma mudança filosófica em como lidamos com isso. Colocamos eles em uma casa primeiro e depois os ajudamos a trabalhar com os problemas que os levaram a ir para as ruas”, comentou Lloyd Pendleton, diretor do programa, à NBC News. Segundo contas do estado, o governo gasta uma média de US$ 19,2 mil anuais cuidando de um morador de rua, incluindo cuidados na saúde pública e, eventualmente, mantendo na prisão. Dar abrigo e ajudar a reconstruir a vida custa cerca de U$ 7,8 mil por ano.

Esse movimento ainda é novo. A tendência ainda é a de criação de leis que dificultem a vida das pessoas em situação de rua. No entanto, a decisão do DOJ e o surgimento de políticas que deem uma nova visão sobre esse problema mostram que esse debate ainda precisa amadurecer bastante, mesmo na maior economia do mundo.

LEIA MAIS

Relatório do Centro Legal Nacional para Moradores de Rua e Pobreza sobre a criminalização da moradia de rua nas cidades americanas (em inglês)