Por Danilo Cersosimo

As paredes maltratadas do palácio que abrigava o museu continuam de pé, mas sua alma se perdeu para sempre. Todo brasileiro morreu um pouco com Luzia.

Quando criança, sempre sonhei em viajar no tempo. Na época, eu tinha algumas curiosidades muito peculiares. Gostaria de ter testemunhado as reações dos navegadores europeus que chegaram à América; minha visão pueril não fazia ideia de quantas veias seriam aqui abertas, mas a ideia de desbravar um ´novo mundo´ soava fascinante para um garoto. Outra viagem no tempo muito particular dizia respeito à chegada dos meus antepassados ao Brasil. Como teria sido essa jornada? Qual o sentimento estampado em suas faces ao desembarcarem em Santos?

Cresci e, obviamente, não viajei no tempo (ao menos não como sonhava). Nutri minha curiosidade e minhas fantasias lendo Júlio Verne, interrogando meus avós, fuçando arquivos diversos e visitando museus levado pelos meus pais (para um garoto da periferia, numa época em que não existia internet, ir ao MASP ou a uma Bienal do Livro era uma aventura desbravadora).

Ao longo dos meus quase 40 anos, tal qual um Indiana Jones pouco audacioso, colecionei itens corriqueiros, como livros antigos, documentos e imagens de família. Em algum momento, tínhamos uma foto da minha avó com 2 anos de idade, nos braços da minha bisavó (uma das que atravessaram o Atlântico quando criança). Era uma fotografia belíssima, de 1922 (a família sempre teve bons fotógrafos, infelizmente eu não sou um deles). Por algum descuido, tal foto se perdeu e nunca mais a encontramos.

Até hoje lamento essa perda, de um único item, de uma fotografia, que provavelmente tinha importância apenas para mim e alguns familiares. Essa sensação de perda foi multiplicada por vinte milhões na noite do último domingo, com o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro, quando todos nós perdemos muito enquanto cidadãos do mundo.

O tamanho da tragédia é imensurável e muito já se discutiu sobre as mazelas que levaram a ela. É óbvio que dinheiro para revitalização e manutenção havia – as obras milionárias e superfaturadas dos Jogos Pan-Americanos, das Olímpiadas e dos estádios da Copa do Mundo estão aí que não me deixam mentir. Isso só para ficarmos em escândalos de corrupção e mau uso do dinheiro público que tiveram como palco principal a cidade do Rio de Janeiro.

Ironicamente, é possível que nos próximos anos o poder público disponha de verba abundante para reerguer o museu das cinzas. O escárnio é maior quando sabemos que no aniversário de 200 anos nenhum ministro compareceu. Um indicador de como este aspecto da cultura nacional é desvalorizado.

No calor do momento, discute-se como desburocratizar o repasse de verbas ou o melhor modelo de gestão dos museus – privada ou estatal? Se chegarmos a algum consenso sobre essas duas questões, o problema estará pontualmente resolvido, ânimos arrefecidos e logo esta pauta cairá no esquecimento – vide o desastre em Mariana, só para ficarmos em um exemplo recente de catástrofe que causou comoção nacional e que até agora não apresenta respostas estruturais por parte do governo brasileiro para evitar que isso se repita.

O debate não é necessariamente sobre como gerir museus e bens culturais, mas sim o que o Museu Nacional e tantos outros deveriam significar para nós enquanto formação da nossa identidade e de como chegamos até aqui como povo. Mirando o futuro, a derrocada da tão importante instituição cultural deveria provocar também a reflexão sobre que tipo de país almejamos ser e qual o modelo de Estados queremos ter.

Não há no Brasil senso de bem público, de cuidado com seus cidadãos. A ausência de uma agenda comum coloca em risco qualquer projeto de nação e o desastre do último domingo é simbólico porque o Museu Nacional não é a única instituição marginalizada pelo Estado brasileiro. Nosso patrimônio cultural, ambiental e humano está abandonado, sobrevivendo sem a menor dignidade.

A crise de confiança nas instituições é provavelmente a maior de que se tem notícia. A descrença na Justiça e na Democracia desemboca em um cenário de desencanto e ruptura, que dificultam qualquer tentativa de discussão desta tão necessária agenda de país.

Além disso, temas sensíveis a sociedades civilizadas parecem cada vez mais abandonados no Brasil, tal qual os milhões de objetos guardados no Museu Nacional agora devorados pelo fogo. O descuido generalizado no que tange ao meio-ambiente é gritante. Destruímos nossa biodiversidade de maneira cega, poluímos nossos rios por absoluta falta de investimento em infraestrutura e em pleno século 21 o acesso ao saneamento básico é de uma precariedade alarmante.

Em paralelo, os direitos humanos são pouco respeitados, as taxas de feminicídio são medievais, bem como os crimes contra minorias. Indígenas e quilombolas são expulsos de suas terras – quando não assassinados. Triste concluir que muitas culturas totalmente dizimadas estavam representadas nos inúmeros acervos do Museu Nacional por meio de extensas pesquisas antropológicas que continham entre outros itens gravações de línguas das quais já não existem mais viventes. Culturas que foram duplamente destruídas pela violência e pelo descaso do Estado brasileiro.

No campo social, a criminalidade e as taxas de violência colocam o país em estado de guerra civil. A Educação é uma calamidade – estão aí os resultados do último IDEB para escancarar os tortuosos caminhos que o país do futuro, agora sem passado, precisará percorrer. No Brasil, cultura e educação não são prioridades. Com raras e honrosas exceções, nunca foram. Cultura e educação, não dão votos.

Portanto, a discussão não é somente sobre de onde virá a verba para a reconstrução do Museu Nacional. O debate é sobre políticas públicas de cultura e educação que atendam aos nossos anseios de país e não a interesses mesquinhos. É sobre políticas públicas de inclusão e acesso à cultura e à educação, principalmente para combater a desigualdade vigente entre nós. O debate é sobre políticas públicas de uso do espaço urbano, de integração dos aparelhos culturais às nossas cidades e aos seus cidadãos. O debate é sobre políticas públicas de investimento e patrocínio à pesquisa e à produção acadêmica, bem como de participação no orçamento e gestão do bem público. É sobre democratizar tudo isso para que nossas instituições sobrevivam ao tempo e aos homens. O debate é sobre cidadania e políticas públicas, conceitos ausentes na agenda brasileira.

Em tempos de manipulação da ignorância, em que alguns negam o Holocausto, a Escravidão, o Genocídio contra os indígenas e minimizam as atrocidades da Ditadura Militar (que aconteceu outro dia), a perda do acervo do Museu Nacional e de tudo o que ele representa traz um prejuízo enorme para a nossa compreensão de Brasil.

Nós precisamos repensar o país que desejamos ter e o povo que queremos ser. Aceitaremos trilhar o caminho apocalíptico descrito no romance cujo título peguei emprestado para este artigo ou nós ainda somos capazes de lutar com esperança?

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Danilo Cersosimo é cientista social e trabalha há mais de 20 com pesquisa de opinião pública.