A notícia parece tão surreal que até parece parte da editoria “mundo bizarro” dos portais. Um supermercado da Dinamarca resolveu vender alimentos com data de validade já ultrapassada e, mesmo assim, tem feito muito sucesso. Mas, por trás dessa iniciativa inusitada, há uma discussão que merecia mais espaço, sobretudo nas grandes cidades brasileiras, que sentem o efeito da crise, da inflação do preço dos alimentos e da dificuldade de gerenciar o lixo produzido diariamente.
Primeiro, é importante ressaltar que uma aposta como essa seria proibida no Brasil. A seção 3 do capítulo 3 do Código de Defesa do Consumidor deixa explícito que “São impróprios ao uso e consumo: I – os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos”. Nesse caso, o comprador pode trocar o produto por outro igual, com prazo ainda em vigor. Ou seja, um mercado com produtos fora do prazo de validade simplesmente não teria condição de existir. Do mesmo jeito que um restaurante não pode distribuir livremente a comida que sobra ao fim do dia porque teria responsabilizado caso alguém passasse mal ao comê-la.
A experiência dinamarquesa não é exclusiva para produtos vencidos. O WeFood também vende produtos com data de vencimento próxima ou com defeitos estéticos (embalagem, arranhado) que foram descartados pelos mercados convencionais. De qualquer modo, a questão não é reproduzir essa iniciativa no Brasil, mas discutir o papel social que ela exerce.
O prazo de validade não estabelece a data a partir da qual o alimento estraga, se torna impróprio ao consumo. Ele determina uma espécie de “garantia” que o fabricante dá para o produto ter sua integridade total. Se uma bolacha (ou biscoito, depende de onde você está lendo o texto) continua igualmente comestível e saborosa, mas fica menos crocante, ela já é considerada vencida.
Se somarmos os produtos ainda consumíveis descartados nos mercados à quantidade de comida em ótimo estado que é jogada fora por restaurantes e feiras livres no final do dia, temos toneladas de alimento saudável parando no lixo todos os dias nas grandes cidades. E tudo isso vai parar nos aterros sanitários, onde ficam impróprios para consumo – e, ainda assim, uma parte é coletada e ingerida por várias famílias carentes.
Por causa de situações como essas, 30% do alimento produzido no mundo é desperdiçado. Um índice inaceitável em um mundo que sofre com problemas de abastecimento em todas as camadas sociais, dos milhões de pessoas que passam fome à classe média/alta que vê uma grande inflação mundial no preço da comida pela redução da oferta. Uma realidade muito clara no Brasil. Em janeiro, os alimentos tiveram aumento médio de 2,28%, puxando para cima o IPCA de 1,27% no mês. Em fevereiro, a alta dos alimentos desacelerou para 1,06% e, adivinhe, a inflação geral também caiu: 0,9%.
Isso já justifica a necessidade de iniciativas para dar uma utilidade aos alimentos que atualmente são descartados. Claro, todas elas necessitam da presença de pessoas especializadas em avaliar a real condição dos produtos, assegurando que não haverá mistura entre os que ainda estão consumíveis e os que já estão estragando. Em São Francisco, uma ONG trata de coletar comida não utilizada por restaurantes, prepará-la e servi-la a moradores de rua. O WeFood dinamarquês colocou à venda. Na França uma lei obriga a comida ainda consumível ser destinada a animais.
A ideia francesa é interessante se considerarmos que 40% dos grãos produzidos no mundo se destinam a alimentar gado, porcos, frangos e outras espécies para abate. Sim, boa parte da soja mato-grossense é comprada pela China para alimentar frangos, e não para virar tofu e molho de soja. E isso se reverteria aos humanos, pois parte da comida que hoje é usada na produção de ração poderia parar nas prateleiras dos supermercados.
Em um país em crise como o Brasil, com novo aumento de indivíduos que retornaram à classe D, governo com dificuldade de cumprir meta de inflação e lixo urbano com pouco tratamento, lidar com a comida desperdiçada é uma necessidade. Sobretudo nas capitais e grandes cidades, onde há maior presença de restaurantes e mercados (ou seja, as principais fontes da comida descartada), mais produção de lixo e mais população de baixa renda que se beneficiaria de qualquer programa que melhorasse o acesso a alimentos.