O que é? Camila Almeida explica por que andar a pé é a experiência que define as cidades – e como ela descobriu isso caminhando pelo centro de São Paulo.

Como se apropriar da cidade 

Quando vim retirante do Recife para São Paulo, para tentar a vida nessa megalópole que acolhe tantos migrantes como eu, queria morar no centro. Estrangeira que era (e sou), não tinha repertório ou preconceito algum, nem saberia relacionar cada bairro com sua fama. Pensava apenas em morar perto do metrô, de preferência da linha amarela, para me dar o luxo de não precisar fazer baldeação no caminho de ida e volta para o trabalho.

Há um ano e meio, moro pertinho da estação República. Assim que cheguei, fazia todos os programões turísticos de metrô. Saía da estação São Bento para comer sanduíche de mortadela no Mercadão e comprar bugiganga na 25 de março; saltava na Liberdade para me esbaldar no karaokê; descia na Luz para ir à Pinacoteca, ao Museu da Língua Portuguesa ou garimpar roupas novas na José Paulino.

Achava que já conhecia muito bem o centro histórico da cidade – até me dar conta de que meus percursos eram sempre subterrâneos. Conhecia mesmo era o subsolo, sempre guiada pela moça que gentilmente nos avisa sobre a próxima estação. A cada ir e vir, gastava R$ 7 num transporte que me impedia de ir olhando as ruas pela janela, como acontece quando nos deslocamos de ônibus.

No metrô, o passatempo é assistir às fofocas requentadas na televisão, enquanto seguimos desconhecendo os caminhos.

Lembro até hoje o que me fez repensar minhas rotas. Num sábado, decidi sair para comprar algumas coisas para a casa. Fui a pé para a Santa Ifigênia, que é perto de casa, mas, de lá, decidi ir à 25 de março. Perguntei qual era a estação de metrô mais próxima, e o rapaz me respondeu que eram duas: Luz e São Bento (ambas a menos de 700 metros de distância). Queria ter visto a cara de espanto que eu fiz na hora. Pela primeira vez, em vez de descer as escadas rolantes da cidade para chegar a algum lugar, caminhei de verdade pelo centro.

Voltei para casa dando pulinhos de alegria, porque, afinal, agora eu morava perto do meu amado pastel de camarão com requeijão do Mercado Municipal e só minhas pernas nos separavam. E ali nasceu o estalo de começar a descobrir a cidade por cima, no mesmo plano por onde circulam os ônibus, os táxis, os carros, os ciclistas e os pedestres. Por muito tempo, fui dependente do Google Maps para conseguir caminhar até os destinos que eu queria, porque não fazia ideia das ruas que deveria pegar.

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Acabei me descobrindo a menos de dois quilômetros de distância de vários destinos que eu frequentava. E, pode até parecer idiota me ouvir compartilhar essa surpresa, mas isso, pra mim, só revela o quanto a vivência das pessoas em São Paulo não inclui trajetos a pé. Ninguém nunca tinha me contado que, aqui no centro, eu poderia caminhar para qualquer lugar.

O mapa com o qual as pessoas estão familiarizadas é o do metrô, não o da cidade. E, quem tem carro, parece também não ter noção de como faz para se deslocar pela cidade andando. Quando conto das rotas que eu faço a pé, ninguém acredita – nem mesmo os paulistanos.

Apesar de São Paulo ter sido projetada para carros, e de as pessoas não se sentirem à vontade para caminhar nas ruas, por falta de calçadas adequadas, de arborização ou por medo mesmo, foi aqui que aprendi a andar a pé. E foi aqui que eu entendi que apenas quem caminha pela cidade consegue se relacionar com ela a ponto de se apropriar, de tomar conta do espaço e de se enxergar como parte daquele lugar. Porque só quem caminha reconhece as pessoas que vivem no bairro e conversa com os vizinhos, com quem mora na rua, com o padeiro e com o flanelinha. Só quem anda a pé consegue circular por todas as ruas e pelos dois lados da via, sem se preocupar se é contramão ou não. E é só andando que se sente, na sola do sapato, o quão distantes os pontos-chave do seu bairro estão.

Uma cidade viva é aquela que tem gente nas calçadas, como Jane Jacobs já dizia nos anos 1960. Em Morte e Vida de Grandes Cidades, ela defende os encontros que as calçadas proporcionam como essenciais para o funcionamento e para a construção do sentido da própria cidade, no capítulo intitulado Os Usos das Calçadas: Contato.

“Se os contatos interessantes, proveitosos e significativos entre os habitantes das cidades se limitassem à convivência na vida privada,
a cidade não teria serventia.”
Jane Jacobs, em Morte e Vida de Grandes Cidades

Andar é pertencer, vigiar, encontrar e conhecer. É só usando as calçadas que passamos a tomar conta da cidade em que a gente mora. No Recife, sempre andei muito a pé, mas, por ser de lá, talvez nunca tenha precisado pensar sobre o que é que faz você se apropriar de um lugar.

Hoje, mesmo continuando estrangeira em São Paulo e sabendo que não sou daqui, me sinto parte da cidade, sei que sou responsável pelo bem-estar do meu bairro. Para retribuir o acolhimento, sempre que quero me deslocar, lembro que o verbo natural para o caminho é caminhar.