O que é? As noções de vida urbana do longa brasileiro, pré-indicado ao Oscar, são narradas por uma nordestina que, trabalhando como empregada doméstica, vive as realidades de ricos e pobres. Camila Almeida mergulha no filme para entender o que ele fala das nossas cidades – especialmente de São Paulo.
O encontro com a cidade
Que horas ela volta? é a pergunta que norteia o roteiro da paulistana Anna Muylaert, diretora e roteirista do aclamado longa protagonizado por Regina Casé. Val, a personagem que a atriz interpreta lindamente, é uma mulher que traz consigo toda a complexidade da vida na cidade. Ela saiu de um Pernambuco árido para viver a dureza tão semelhante de São Paulo; morou por anos num quartinho nos fundos da casa dos patrões, no Morumbi, mas, quando buscou um lugar para viver com independência, migrou para o Campo Limpo; ela comemora o intercâmbio internacional garantido ao filho da patroa, enquanto a saudade assola seu próprio calendário, com os anos ausentes de visitas à própria filha.
Apesar de toda desigualdade que ela incorpora, o filme quebra com qualquer dicotomia para mostrar que Val atua num sistema muito mais complexo. A indagação que dá título ao filme remete às mulheres que trabalham fora de casa — e Anna Muylaert faz questão de mostrar que ela está nas bocas dos filhos de patroas e empregadas. Assim como fica clara a quebra de barreiras entre os dois mundos quando esses mesmos filhos prestam vestibular para a mesma universidade.
“Que horas ela volta?” é uma sentença sobre a difícil escolha entre a família e o trabalho, que recai mais pesadamente sobre as mulheres. Mas também é sobre ir e vir. E é nesse ato de sair e voltar que se dá o encontro com a cidade, no momento em que deixamos a vida privada para alcançar o espaço público. E Val circula entre o público e o privado durante toda a trama, conectando universos cheios de interseções e divergências, que entram em conflito e conversa o tempo todo.
Mães e funcionárias
51,3% das mulheres acima de 15 anos, com filhos, trabalham
Dos 40 milhões de mulheres brasileiras que trabalham, 70,6% são mães
(PNAD, IBGE, 2012)
Onde você mora?
Anna Muylaert salienta que, sim, a localização faz diferença e que, no Brasil, as fronteiras entre os bairros também são fronteiras entre as pessoas. A família rica para quem Val trabalha tem uma casa generosa em metros quadrados no Morumbi, na zona sudoeste de São Paulo. A roupa que ela usa dentro da casa varia. Nas ocasiões especiais, é um uniforme. Na rotina, as camisas turísticas que se dão de lembrança, compradas em viagens internacionais. É no quartinho dos fundos onde mora que Val guarda seus poucos objetos pessoais e a televisão de tubo adornada com adesivos de caderno.
A casa onde mora, porém, não é sua. Nadar na piscina de azulejos azuis variados, que fica iluminada à noite? Jamais. Sentar à mesa onde a família faz as refeições? Nem pensar. As amigas que ela fez no bairro também estão ali a trabalho, e em tempo integral.
Quando a empregada decide procurar uma casa onde possa viver com a filha, recorre a um bairro mais modesto, com aluguéis mais acessíveis. E a diretora ataca o brutal mercado imobiliário de São Paulo. A cidade, com seus muitos migrantes, aplica preços altos e contratos abusivos. Por R$ 400, Val e sua filha encontram uma sala pequena, no bairro do Campo Limpo, toda pintado de vermelho, e com mobília de salão de beleza. Elas topam ficar, apesar das condições, mas não conseguem alugar, porque não tinham como fazer um depósito de garantia na conta do proprietário.
O que é uma praça para você?
Ao atravessar a fronteira entre privado e público, Anna Muylaert teoriza sobre o urbanismo paulistano num tom ácido, contundente, mas com humor. É de um ônibus em movimento que Val estranha os espaços públicos que tomam conta de São Paulo. Ao passar pelo Largo da Batata, em Pinheiros, ela pergunta: “E isso é praça?”. Após a reforma, que demorou mais de dez anos para ser concluída, sendo finalizada em 2013, o largo se tornou apenas um vazio com piso de concreto.
Como Val mesmo avalia, não tem um pé de mato ali, não tem gente. Os sobrados históricos que contavam parte importante da história do bairro foram demolidos; os comerciantes de toda sorte, removidos. Naquele início da Faria Lima, avenida pólo de prédios empresariais luxuosos, não cabia mais o espontâneo, o casual, o desordenado. Hoje, restam apenas a estação de metrô e a igreja. Saudosa, Val relembra a época em que a praça era ponto de encontro de nordestinos, que se reuniam para dançar um forrozinho bom. E atesta: aquele vazio, sem música, sem gente e sem função, não pode ser chamado de praça.
Mas, enquanto Val ganha a rua e a cidade, circula por todas essas realidades e simboliza as interseções da vida urbana, a pergunta não cansa de ressoar: Que horas ela volta? E, numa cidade como São Paulo, há muitas outras: Quanto tempo ela demora para voltar? E como voltará? E que cidade é essa em que ela está? O que ela faz pela cidade e o que a cidade faz por ela?