Manaus foi o palco de um dos maiores massacres da história do sistema prisional brasileiro. Uma rebelião causada pela disputa entre presos membros do PCC (Primeiro Comando da Capital) com outros ligados à FDN (Família do Norte), aliada do Comando Vermelho, deixou 56 mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim.
Os problemas entre o PCC e a FDN já vinham crescendo nos últimos meses, e até foram motivo de reportagem do site brasileiro do jornal El País há dois meses. Um problema que faz parte de algo ainda maior: a nacionalização das duas maiores facções criminosas do país, o CV e o PCC.
Em outubro, entrevistamos a antropóloga Karina Biondi, que estuda o PCC desde 2003, para falar sobre como é o funcionamento do grupo que surgiu e opera dentro dos presídios. Confira:
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“O PCC consegue funcionar mesmo em cadeias sem nenhum membro seu”
por Camila Montagner
Seja na instituição da paz em Fortaleza ou nos julgamentos informais de casos de violência e dívidas na Grande São Paulo, o Primeiro Comando da Capital continua a influenciar diretamente o cotidiano das grandes cidades brasileiras. Algumas pistas da maneira como se organiza e opera aparecem de quando em quando nas notícias sobre investigações policiais e, ainda assim, muitas delas contraditórias.
O PCC atravessa as questões que dizem respeito ao sistema carcerário, desde as mais cotidianas, como a divisão de camas, até as rebeliões. Esse foi um dos aspectos abordados na tese de doutorado de Karina Biondi, antropóloga que estuda a organização desde 2003. Seu livro “Tudo Junto e Misturado – Uma Etnografia do PCC”, acaba de ter sua tradução lançada nos Estados Unidos.
Em seu trabalho, Karina procurou conhecer o Comando a partir do sistema prisional, levantando as questões que os encarcerados se colocavam e como eles davam sentido a sua realidade. A pesquisadora, que atualmente faz pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas, fala nessa entrevista sobre o modo como entende as disputas e acordos recentes envolvendo a facção.
Por que você decidiu estudar o PCC?
Eu cursava Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP). Era casada e tinha uma filha. Um dia, fui surpreendida com a polícia na porta de casa, prendendo meu marido como suspeito de um crime. Ele foi para um Centro de Detenção Provisória, onde ficam presos que aguardam julgamento. Na época, foi muito difícil. Eu não tinha condições emocionais de continuar meu curso na USP, cheguei a trancar a matrícula. Mas com o passar dos meses, vi que a situação poderia se prolongar e resolvi seguir minha vida sem, contudo, abandoná-lo, e voltei à faculdade. Em uma aula sobre Antropologia Urbana, o professor pediu como trabalho final que os alunos fizessem uma pesquisa de campo de curta duração. Daí veio a ideia de pesquisar a cadeia que eu visitava semanalmente.
E aí veio o PCC?
A ideia inicial era estudar a instituição, mas, para onde eu olhava (agora já era um olhar com o interesse de escrever a respeito, diferente daquele que eu tinha até então), eu via o PCC acontecendo. Ele estava presente na forma como os presos definiam quem dormia nas camas e quem dormia no chão, na maneira de entregar a comida, nos jogos de futebol, na relação com a administração da cadeia e até na forma como se usava o banheiro. Decidi, então, escrever sobre o PCC. A pesquisa que fiz durante a graduação recebeu o Prêmio Antropologia e Direitos Humanos, da Fundação Ford e da Associação Brasileira de Antropologia, e isso me incentivou a continuar em nível de mestrado.
Como se organizou o PCC em São Paulo?
Dizem os presos que o PCC surgiu em 1992 como uma forma de eles se unirem para enfrentarem o que consideravam injustiças praticadas pelo Estado. Assim, tinham uma dupla política: a união dos ladrões e a guerra contra o sistema. No começo ele tinha uma estrutura piramidal, com soldados, generais e, em seu topo, os fundadores, que tinham a palavra final em todas as decisões. Dizem que, com o tempo, o poder subiu à cabeça dos fundadores e eles começaram a praticar o mesmo tipo de injustiça que eles queriam combater. Houve uma espécie de revolução interna, com o assassinato ou deposição dos antigos líderes. De acordo com o Marcola (considerado pela imprensa e pela Justiça líder do PCC, mas que sempre negou essa posição), em depoimento a uma CPI, o poder acabou indo pra mão dele, mas ele logo tratou de distribuí-lo. Na mesma época, a palavra “igualdade” foi adicionada ao antigo lema “Paz, Justiça e Liberdade”. Isso foi no início da década de 2000.
Qual a importância simbólica disso?
A partir dessa adição da “igualdade” (embora não de uma hora para outra e nem de forma homogênea em todo lugar), a forma de os presos se relacionarem uns com os outros mudou substancialmente. A grande questão com a qual lidam diariamente passou a ser a existência de um comando entre iguais, uma vez que dar ou receber ordens, subjugar ou ser subjugado, manifestar superioridade ou inferioridade, passou a ser malvisto. Uma das frases mais faladas dentro dos presídios passou a ser “é de igual!”. Tudo, então, desde assuntos banais e cotidianos até questões urgentes e capitais, passou a ser objeto de debates com vistas a um “consenso”. Como dizem, “nenhuma decisão pode ser isolada”.
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Quais são as principais diferenças entre o PCC e o Comando Vermelho?
No começo do PCC, eles chegaram a usar o mesmo lema do CV e fizeram uma aliança. Entretanto, no começo da década de 2000, a aliança foi suspensa por uma certa incompatibilidade de princípios ou, como eles dizem, “proceder”. Mas o acordo que mantinham é que presos paulistas teriam passe livre em cadeias do CV e vice-versa. Em diálogo com colegas pesquisadores do Rio de Janeiro, notamos como principais diferenças o caráter territorial do CV, ligado ao tráfico de drogas, com presença ostensiva nas comunidades, em contraposição ao PCC, que não é fundado no tráfico e cuja atuação nas ruas é o mais discreta possível. Para se ter uma ideia, não se vê armas nas periferias de SP. Não é bem visto. Também não há a figura de um dono de morro, como se vê no Rio de Janeiro. Na verdade, quase nenhum morador sabe quem é membro do PCC e quem não é. Além disso, o PCC conseguiu uma hegemonia no crime paulista e a guerras hoje são inexistentes, diferente da sistemática do Rio de Janeiro, em que várias facções disputam os territórios.
Como as decisões são tomadas no PCC?
Antes de responder a essa pergunta, preciso falar do grande problema que tive que enfrentar em minha pesquisa e que definiu a abordagem que conferi ao PCC. Eu vi “cadeias do PCC” que funcionavam sob as orientações do PCC, com o Comando muito intenso lá dentro, mas sem contar com nenhum de seus membros. Tratava-se de “cadeias do PCC” que não tinham membros do PCC nela. A principal questão de minha pesquisa foi tentar descrever como o PCC acontece mesmo onde não há membros seus, ou como é possível que um grupo funcione sem depender da presença de seus membros. Uma das contribuições que a antropologia deu a esse problema foi a possibilidade de questionar o conceito de grupo. Tratava-se mesmo de um grupo? Meu argumento é que não, o PCC não é um grupo e, portanto, o conceito de crime organizado é inadequado para defini-lo. Afinal, ele não se restringe à soma de seus membros. Além disso, para complicar um pouquinho mais, conforme meu marido era transferido de cadeia (uma prática comum em São Paulo é a transferência constante dos presos entre uma cadeia e outra) e depois quando fui pesquisar o PCC nas ruas, vi que, em cada lugar, o PCC funcionava de um jeito. Ideias que vigoravam em uma cadeia não vigoravam em outra. Procedimentos adotados em um bairro eram desconhecidos em outro. Por isso é difícil responder sua pergunta. Porque depende de onde, quando, de quem está envolvido na situação, das circunstâncias. Veja como isso é coerente com o fato de que o PCC não pode ser definido como um grupo. Ele não tem coesão e nem unidade. Mas comum a todas as situações, eu via na tomada de decisões algo que chamei de método-PCC: a busca pelo que consideram “o certo” a partir de debates intensos que invariavelmente envolvem várias pessoas, sejam membros ou não do Comando.
Você vê alguma semelhança entre o modo como o PCC estabelece regras dentro dos presídios e o que está acontecendo do lado de fora em Fortaleza?
Noticiou-se uma queda no número de homicídios em Fortaleza e isso foi atribuído a uma declaração de paz entre facções, não foi? Acho que é muito coerente com o que vejo em São Paulo, tanto em cadeias quanto nas ruas.
Em matéria publicada no El País, a paz estabelecida a partir do acordo entre PCC e CV é atribuída ao “modelo empresarial adotado pelo PCC em São Paulo, deixando antigas desavenças de lado e focando no comércio da droga”. Você verificou esse modelo?
Acho que o PCC está longe de adotar um modelo empresarial. O tráfico de drogas, sim. Entretanto, o crime paulista por excelência sempre foi o roubo, enquanto o carioca, o tráfico. Essa é outra distinção importante. Dizem os criminosos paulistas que “o tráfico faz parte do crime, mas não é o crime”, sendo que atualmente “crime” é referido como sinônimo de “PCC”. Seria necessária uma pesquisa em Fortaleza para ver como se dá a atuação conjunta do PCC e do CV, mas o que vejo em São Paulo é menos um modelo empresarial do que uma questão, digamos política, de uma política que nada tem a ver com a partidária, mas que se refere ao modo como essas pessoas conduzem suas existências: “vamos nos unir para enfrentar um inimigo comum”.
Você vê o caso de Fortaleza como um desdobramento da “paz entre ladrões”, da qual você fala em sua pesquisa?
Tudo indica que sim. Mas, como eu disse, tem um fator que pode diferenciar o que acontece em Fortaleza do que acontece em São Paulo, que é a coexistência do PCC e do CV nas mesmas regiões. Recentemente, falou-se de uma declaração de guerra entre as facções. Sou cautelosa com relação ao assunto. Em primeiro lugar, porque são poucas as informações a esse respeito, e nenhuma proveniente dos maiores especialistas no assunto, os próprios presos implicados no que está acontecendo. Em segundo lugar, porque, como disse, cada lugar funciona de um jeito e só extraordinariamente ações conjuntas e imediatas conseguem acontecer. As informações demoram a chegar em todos os lugares, quando chegam, sendo que muitas vezes chegam de maneira diferente. Acho que só uma pesquisa empírica séria, que ouça o que dizem os atores envolvidos no conflito ou no tratado de paz poderia lançar alguma luz sobre o assunto.
Como casos de violência são arbitrados dentro do PCC?
Geralmente eles fazem o que chamam de “debate”. A mídia televisiva tratou os debates como tribunais do crime. Eu tenho críticas a essa metáfora porque o que orienta os procedimentos no PCC (o que chamei de método-PCC) é muito diferente do que está na base da Justiça Estatal. Em primeiro lugar, porque não encontramos no PCC leis, para as quais haveria uma punição em caso de descumprimento. O que eles buscam é o que chamam de “o certo”, e “o certo” só pode ser definido caso a caso. Para tanto, eles procuram sempre seguir a seguinte orientação: “nenhuma decisão pode ser isolada”. Isso implica ter pelo menos três pessoas no debate. Mas não há formato definido ou limite de quantas pessoas pode participar, nem de quais pessoas estariam habilitadas para tanto. Ainda assim, dizem que os debates são cada vez mais raros, pois o PCC sofreu outra transformação mais recente a partir de 2009, quando passou a preferir conscientizar as pessoas que cometem erros a “cobrá-las” ou definirem uma “consequência” ao seus atos. Outra frase que se ouve muito nas cadeias é “nada é proibido, mas pra tudo tem consequência”, sendo que “consequência” é uma alternativa à “punição”, que pressupõe desigualdade entre o que pune e o que é punido e, por isso, contraria um dos seus principais ideais, a “igualdade”.