Quase todas as grandes cidades brasileiras já adotaram algum sistema de cartão recarregável para o transporte público, um método largamente utilizado por quem utiliza ônibus, trem ou metrô no dia a dia. Os usuários eventuais já contam com ajuda de máquina de débito em alguns ônibus – algo já existente há anos nas estações de trem e metrô. Se a máquina de cartão se tornar onipresente, crescerá a quantidade de pessoas que questionarão: é realmente necessário termos cobradores de ônibus?
O tema é complexo. A tecnologia fez que muitos desses profissionais não tenham sua força de trabalho aproveitada plenamente, além de representarem um custo ao sistema de transporte como um todo. No entanto, um país em crise como o Brasil não pode cortar milhares de vagas de emprego sem considerar o impacto social da medida e nem todos os veículos podem dispensar um segundo funcionário por falta de informação sobre o itinerário, acessibilidade para os passageiros com dificuldade de locomoção e até segurança contra assédios, sobretudo com mulheres que estejam sozinhas. Resolver algumas dessas questões exigiriam grandes investimentos, pois teriam de se espalhar por todos os ônibus e todos os pontos da cidade.
No meio dessa queda de braço, algumas cidades começaram a pressionar por medidas que atinjam os cobradores de ônibus. Um processo que tende a se tornar mais recorrente e, por isso, precisa ser debatido com mais vigor pela população.
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Em São Paulo, a lei 13.207/2001 prevê a presença de um funcionário, além do motorista, do sistema de transporte público que tenha como atribuições auxiliar o condutor do veículo e usuários – principalmente gestantes, idosos e pessoas com mobilidade reduzida – e a cobrança da tarifa, quando for o caso. São aproximadamente 20 mil cobradores na maior cidade do Brasil, o que corresponde a 40% do total de trabalhadores do sistema de transporte urbano. Entre os cobradores, 20% são mulheres e, a cada mês, 2,5% deixam a função para assumir outros cargos no setor.
Uma disputa judicial a respeito da lei 16.097 se arrastava desde a sua promulgação, em 2014. A lei altera uma palavra no primeiro artigo da 13.207/2001, substituindo “deverão” por “poderão” ter um funcionário além do motorista. A polêmica acabou com a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo de que os cobradores deverão ser mantidos.
Na contramão da capital paulista, Curitiba promulgou há dois anos uma lei que proíbe o motorista de exercer duas funções. Na capital paranaense, mesmo os cobradores que ficam nas 342 estações-tubo são funcionários das concessionárias do transporte público. Segundo o vice-presidente do Sindicato de Motoristas e Cobradores de Curitiba e Região Metropolitana (Sindimoc), Dino César de Mattos, antes da aplicação da lei, 30% dos motoristas também eram responsáveis pela cobrança da passagem caso o passageiro não estivesse com o bilhete. “Somos a favor da presença do cobrador mesmo no ônibus sendo menor, porque a atenção que o motorista tem que ter na direção é a mesma. Há momentos nos quais ele precisa embarcar ou desembarcar pessoas gestantes ou cadeirantes”, diz.
A cidade possui 66 linhas que são operadas por micro-ônibus sem cobrador, nas quais só é aceito o pagamento por bilhete. Quando a lei foi aprovada, a prefeitura calculou que seriam necessários R$ 1,15 milhão para pagar salários para cobradores dessas linhas. Um cobrador que trabalha hoje na capital paranaense ganha R$ 1.247,37 por mês e trabalha seis horas por dia. Entre os profissionais que atuam nessa função, 57,9% são homens e 42,1% são mulheres.
Atualmente a cidade possui 3.287 cobradores de ônibus. Apesar de ser contra os motoristas exercerem dupla função, o vice-presidente do Sindimoc também é contra a exigência do bilhete para o embarque. “A moeda nacional não pode ser rejeitada por ninguém, não pode ser uma barreira para o direito de ir e vir”, argumenta. A proibição da figura do motorista que também cobra a passagem nos ônibus urbanos de Curitiba, no entanto, contrasta com o sistema de transporte em São José dos Pinhais, cidade da região metropolitana que abriga o Aeroporto Internacional Afonso Pena. Lá o sistema de transporte público opera somente com o cartão-transporte. Motoristas que atuam nas linhas que ligam a capital paranaense ao município fizeram um protesto contra a dupla função no mês passado.
Cobradores em extinção
Uma cidade que tem atuado fortemente para reduzir a quantidade de cobradores no seu sistema de transporte é Campinas, no interior de São Paulo. O processo para extinguir a função começou em outubro de 2014 com a ideia de que todos os passageiros passassem a utilizar exclusivamente o bilhete para o embarque. No início, foram vendidos passagens de uma viagem por R$ 5,50, sendo que R$ 2 poderiam ser reembolsados pelos usuários que efetuassem a devolução do cartão descarregado. Em junho de 2015, no entanto, os bilhetes especiais deixaram de ser comercializados e os ônibus voltaram a aceitar dinheiro, com a justificativa de que o número de passageiros que utilizariam a moeda para embarque era muito pequeno.
O Ministério Público do Trabalho determinou que o exercício da dupla função pelos motoristas do transporte público de Campinas coloca em risco os passageiros e precariza o trabalho. Depois de negociações com o MPT, a Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano se comprometeu a instalar caixas de autoatendimento para que usuários sem bilhete possam comprar a passagem com cartão de crédito ou débito e os motoristas tenham que se preocupar unicamente com a direção dos veículos. O prazo para que as medidas sejam implantadas é de 180 dias e começou a ser contado a partir de abril.
Dos cerca de 1,6 mil cobradores campineiros em 2014, entre 300 e 400 cobradores ainda atuam no sistema de transporte público. Segundo o assessor do sindicato da categoria, Marcos Cará, os que permaneceram na função são aqueles que atuavam há mais tempo. “Era um emprego transitório, uma função que tinha muita rotatividade, uma média de dois anos de permanência na função. Os motoristas, por outro lado, passavam por um treinamento de cinco anos e exercem a profissão, em média, por cinco anos.”
Segundo Cará, metade dos 1,2 mil ex-cobradores saiu do sistema de transporte público por meio de um plano de demissão voluntária. Aqueles que decidiram sair recebiam dois ou três avisos prévios e valor equivalente a 40% do saldo do FGTS. Os outros 50% foram reabsorvidos em outras funções nos setores administrativos e de fiscalização ou viraram motoristas.
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A transição para um sistema de transporte público que não aceita dinheiro causou transtornos desde o início, com longas filas para compra do bilhete. O assessor do Sindicato dos Transportes Rodoviários da Região de Campinas diz que o processo enfrenta uma série de problemas técnicos. Nos cartões de uma e duas viagens não constava nenhuma informação sobre a possibilidade de reembolso de R$ 2 caso o usuário realize a devolução e a maioria nunca chegou a fazê-la. A Empresa Municipal de Desenvolvimento de Campinas (Emdec) chegou a estudar a possibilidade de criar um fundo para “equalizar possíveis déficits” com o dinheiro extra que recebido em troca desses bilhetes. O prazo para a suspensão da venda dos bilhetes de viagem única e dupla foram estendidos por três vezes até abril de 2015. Mesmo com a extinção de aproximadamente 1.200 cargos de cobrador, a tarifa subiu de R$ 3,50 para R$ 3,80 em janeiro de 2016.
Cidades como Sorocaba extinguiram a figura do cobrador e possuem um sistema de bilhete de uma e de duas viagens que são armazenados no momento em que o usuário passa pela catraca, de forma que ele não precisa pagar um valor maior que o da tarifa. Cidades como Jundiaí e São Paulo estão testando máquinas que aceitam pagamento com cartão de crédito ou débito dentro dos veículos do transporte público.
Com o cenário atual, os benefícios da extinção do cobrador não parecem compensar todos os transtornos causados e investimentos necessários nos ônibus. Os cenários nos quais a presença de um segundo funcionário se faz absolutamente desnecessária, como no caso dos locais que adotaram tarifa zero ou possuem veículos acessíveis combinados com um sistema eficiente de cobrança, ainda não correspondem à realidade da metrópoles brasileiras. Ainda assim, investir na capacitação de cobradores é uma boa maneira de inserir mais trabalhadores qualificados no mercado, que terão alternativas no caso de a função se tornar obsoleta em médio ou longo prazo.