O que? Copenhague ganhou reputação mundial ao longo do tempo como uma referência em infraestrutura cicloviária. Uma fama justificada. A relação entre os dinamarqueses e as bicicletas vem de longa data, fazendo com que pedalar seja um forte traço cultural no país. O que uma cidade com aproximadamente 540 mil habitantes e 180 km² de área tem a nos ensinar?
Em 1892, a primeira ciclovia
No início do século 20, as ruas de Copenhague eram disputadas por ciclistas, bondes, homens a cavalo, carroças e muitos pedestres. Naquele tempo, a presença do automóvel nas ruas era ínfima. Nada muito diferente de qualquer outra cidade daquela época. Com a expansão rumo aos subúrbios, o uso do transporte animal e da locomoção a pé passam a ser menos dominantes, dando lugar às bicicletas. Isso porque as distâncias entre os locais de trabalho e as novas áreas suburbanas não eram próximas suficientes para serem feitas caminhando, mas perfeitamente viáveis pedalando.
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Ainda que em 1912 já existissem 35 km de vias para bicicletas em Copenhague, a disputa entre os diferentes modos de locomoção pelo espaço viário só aumentava. A infraestrutura existente à época havia sido criada para bondes e transporte animal e não conseguia atender à forte demanda dos ciclistas.
Foi preciso repensar o espaço e sua forma de utilização.
Os ciclistas se organizaram
A Associação Dinamarquesa de Ciclistas (DCF) foi criada em 1905 e teve papel fundamental na luta pela implementação e melhoria da infraestrutura cicloviária. A entidade fez a primeira contagem de ciclistas em Copenhague – em 1910! – cujos dados evidenciavam o aumento gradativo do uso da bicicleta e a diminuição do transporte animal. Assim, parte das vias antes destinadas às carroças foi convertida em ciclofaixas. Quanto mais essa infraestrutura crescia, melhores eram as condições para o uso de bicicletas.
No entanto, as vias urbanas careciam de mais regulamentação e organização. A presença de motociclistas nas vias (em tese) destinadas às bicicletas era frequente, bem como ciclistas invadindo o espaço destinado a outros meios de transporte. A inserção do automóvel passa a ser mais presente a partir da década de 1920, gerando ainda mais disputa pelo espaço. O conflito era intenso.
Na época, a DCF produziu uma série de estudos técnicos e propôs inúmeros projetos referentes à infraestrutura e ao uso de bicicletas como meio de transporte e lazer. A forte atuação da associação pressionou os órgãos públicos e o governo a tomarem decisões consistentes e definitivas. Em 1928 foi concebido o que hoje convencionou-se chamar de “Copenhagen Style” de infraestrutura ciclística, referência para especialistas, estudiosos e gestores públicos no mundo inteiro.
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Nos anos 30, para minimizar os impactos da crise econômica que afligia a Dinamarca, o parlamento impôs uma série de leis que promoviam a construção de infraestrutura viária nas cidades. Tais investimentos deveriam priorizar a ampliação e melhoria do sistema de transporte público, bem como do espaço destinado aos pedestres e aos ciclistas.
A Copenhague do pré-guerra estava sendo desenhada para as pessoas que caminhavam, pedalavam ou pegavam o bonde, mas a partir da Segunda Guerra Mundial isso iria mudar…
A cidade para os carros
Ainda que a quantidade de automóveis estivesse crescendo desde os anos 20, sua presença continuava muito tímida em comparação com o que viria a partir da década de 50, quando a incidência de automóveis ultrapassa a de ciclistas nas ruas da capital dinamarquesa. Consequentemente, as diretrizes do planejamento urbano na cidade passam a privilegiar o automóvel, visto então como o transporte do futuro (ironicamente, tal qual a bicicleta o fora no início do século).
Tal fenômeno se disseminou pelo mundo no pós-guerra, quando os veículos motorizados ganharam espaço. Diferentemente do que ocorreu em outros países, a bicicleta volta a ganhar força a partir dos anos 70 na Holanda e na Dinamarca, vindo a reboque de uma tendência mais ampla que visava mitigar os efeitos dos carros nessas cidades, previamente habituadas a outras formas de mobilidade urbana.
Esse renascimento potencializou o papel cultural da bicicleta entre os dinamarqueses. A Copenhague dos carros durou pouco.
A crise do petróleo e as demandas populares
A transição bicicleta-carro na década de 50 foi repentina e intensa – não somente na Dinamarca, mas em todos os países que vivenciaram tal fenômeno. Se, no passado, a cidade desenhada para pedestres, bondes e carruagens não estava preparada para ciclistas e ciclovias, por outro, a então Copenhague das bicicletas não estava preparada para os automóveis.
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Tal cenário levou as autoridades a substituírem ciclofaixas por vias exclusivas para automóveis, bem como o cancelamento de projetos de expansão da estrutura cicloviária, causando muita polêmica junto a opinião pública e ativistas. Ao longo dos anos 60/70, inúmeras propostas foram feitas pelo DCF visando inibir a prioridade aos automóveis e promover o uso da bicicleta.
A crise do petróleo de 1973 constituiu-se num marco da transição carro-bicicleta em Copenhague, fazendo com que a demanda popular por políticas públicas e infraestrutura cicloviária aumentasse consideravelmente a partir dali. As manifestações populares, tão importantes nessa transição, foram também fundamentais para a estabelecer uma nova agenda de desenvolvimento sustentável para a cidade e para o país.
A cidade hoje e o que fica de aprendizado
O renascimento simbólico da bicicleta tornou o ciclismo uma prioridade política cada vez mais explícita na capital dinamarquesa durante os anos 70 e 80. A década de 1990 testemunhou o surgimento da ambição política de redesenhar o sistema de transporte que melhorasse as condições para todos os atores no espaço urbano.
O embate entre gestores públicos e ativistas pode tê-los colocado em lados opostos em alguns momentos cruciais, mas a predisposição ao diálogo ajudou a produzir uma série de estudos, regulamentações, projetos de lei e políticas públicas que beneficiaram a cidade e seus moradores.
Hoje, Copenhague é tida como referência a ser seguida quando se fala em infraestrutura cicloviária seja por sua malha abrangente, segura e de alta qualidade ou pelos planos ambiciosos de expandir cada vez mais o uso da bicicleta entre seus cidadãos. Essa infraestrutura conta com 429 km de extensão, 48.000 bicicletários e 650.000 bicicletas. Sim, você entendeu certo: existem mais bicicletas do que pessoas por lá. O vídeo abaixo mostra a hora do rush em um cruzamento da cidade onde o número de bicicletas é muito superior ao número de carros circulando.
A bicicleta se tornou um ícone contemporâneo da capital dinamarquesa, simbolizando questões relevantes como consciência ambiental, transporte com baixa emissão de carbono, hábitos saudáveis, participação popular nas questões públicas e até mesmo um particular estilo de vida urbano. Pode soar paradoxal, mas não se trata de privilegiar o ciclista, mas sim de pensar a cidade como um todo, para todos.