“Aqui já é a Califórnia, e nem parece ter tanta fartura assim.” A frustração de Tio John era compreensível. Sua família havia abandonado as terras em Oklahoma e, como milhões de pessoas do Meio-Oeste, tentava a sorte nas ricas e fartas terras californianas. Mas a primeira imagem que tinham ao cruzar a divisa estadual não lembrava em nada o paraíso rural que lhes fora prometido. Era só terra, areia e montanha, com alguns arbustos que sofrem para se manter verde e as árvores de Josué, famosas pelo álbum Joshua Tree da banda irlandesa U2. Esse é o deserto de Mojave.
O cenário descrito por John Steinbeck em “Vinhas da Ira”, a saga da família Joad em busca de uma nova vida na Costa Oeste americana, não mudou muito. As rodovias melhoraram, as condições de trabalho também, as fazendas são mais mecanizadas, mas o deserto ainda está lá, como uma provação final para quem quer chegar ao rico e fértil vale central. Mas, no meio desse mundão de terra seca, está a terceira maior cidade da Califórnia, criada para rivalizar com Los Angeles: California City, a metrópole futurista de 14 mil habitantes.
Na década de 1950, o mundo – ou, pelos menos, a parte mais rica dele – vivia uma era de grande empolgação com as perspectivas que a tecnologia apresentava. Era um momento em que se acreditava que conceitos seriam revertidos e o caminho era refazer tudo ou fazer tudo novo. Os Jetsons não surgiram de geração espontânea, foram parte de um processo histórico e cultural.
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Nessa época, Los Angeles já dava sinais esgotamento urbano. A cidade estava muito grande, muito cheia e com problemas que pareciam apenas piorar. O sonho americano era diferente, composto por vida em comunidades tranquilas, cheias de espaço para as pessoas circularem com seus carros, darem um “oi” ao vizinho enquanto regavam o jardim da entrada de casa e uma lógica matemática na distribuição de serviços e espaços públicos. Os bairros de subúrbio de classe média cresciam, mas o sociólogo Nat Mendelsohn teve uma ideia mais ousada.
Em 1958, o professor universitário comprou um terreno de 320 km² em uma área não incorporada (que não pertence a nenhuma cidade) no deserto do Mojave, pouco a leste das cidades de Bakersfield e Mojave, 120 km ao norte de Los Angeles. Nesse espaço, ele desenhou um que entendia como uma cidade-modelo, com um grande parque central e uma grande rede de ruas e avenidas radiais. Seria a nova metrópole californiana, uma cidade que rivalizaria com Los Angeles em tamanho e importância, mas já surgia respeitando os conceitos modernos (para a época) de planejamento urbano.
Milhares de dólares foram gastos na divulgação do megaprojeto de California City. O objetivo era atrair principalmente angelenos de classe média e alta descontentes com a qualidade de vida cada vez pior em sua cidade. Esses moradores garantiriam que a cidade se desenvolvesse por conta própria com o tempo, pois eles próprios formariam um mercado consumidor parrudo e também seriam os empreendedores de novos negócios e serviços que surgiriam.
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O projeto teve boa aceitação. Muita gente se convenceu que daria certo e resolveu apostar na nova metrópole californiana. No começo da década de 1960 surgiram os primeiros moradores, um mercado, o parque central com lago artificial, um campo de golfe e, claro, uma escola. Em 1965, os eleitores decidiram incorporar California City, o que basicamente significa que ela se transformou formalmente em um município.
O problema é que, já nesses primeiros anos, não havia sinais de que lá haveria uma metrópole. E parte disso se deve ao sucesso da ideia de Mendelsohn. O sociólogo/incorporador foi tão convincente ao vender a ideia que muita gente acreditou que aquele era o futuro, o que chamou a atenção de milhares de investidores do mercado imobiliário. Ao invés de atrair moradores que construiriam a nova cidade, ele atraiu especuladores que queriam esperar a valorização daquele espaço para revender.
A quantidade de consumidores finais foi muito pequena, e pouca gente apostou em uma nova vida no deserto. Com isso, não se criou uma dinâmica econômica em California City, que rapidamente saiu do imaginário dos californianos como a terra do futuro. O interesse nos espaços disponíveis caiu e os especuladores nunca conseguiram repassar seus terrenos para pessoas realmente interessadas em seguir na construção da metrópole.
Com os anos, esses investidores deixaram de pagar os impostos ligados a seus lotes e os terrenos foram devolvidos ao poder público. No entanto, toda a área que Mendelsohn havia planejado para abrigar a metrópole estava incorporada ao município que, por isso, é o terceiro maior em área de Califórnia, o 34º de todos os Estados Unidos.
O curioso é que a área não urbanizada preservou sua trama original, com avenidas e ruas de terra batida formando quarteirões e bairros no meio do deserto, tendo como únicos moradores pequenos animais e arbustos. São vias de tráfego oficiais, com leis de trânsito e endereço registrado na prefeitura, mas apenas curiosos circulam por elas.
Atualmente, California City até vive um momento de relativa estabilidade. A cidade tem 14 mil habitantes, que vivem principalmente das quatro grandes fontes de emprego da região: uma base da Força Aérea americana, um presídio estadual, uma pista de testes da montadora Kia e um aero e espaçoporto particular. É o suficiente. Seus moradores já se acostumaram à vida de uma bucólica cidade de interior no meio do deserto, e, mais do que o glamour, materializar o sonho de Mendelsohn e dos primeiros habitantes talvez só trouxesse um problema insolúvel de abastecimento de água.