Quem e o quê? Paulo Noviello nasceu e viveu todos os seus 32 anos em São Paulo. Formado em jornalismo pela ECA-USP e com pós-graduação em Gestão de Mídias Digitais pelo Senac-SP, atualmente trabalha como coordenador de redação na agência Absoluto Comunicação. É apaixonado pela cidade e seus segredos, suas histórias, boas ideias para melhorar o convívio urbano e a literatura urbana de João do Rio, João Antonio, Rubem Braga e outros observadores das cidades. Seu blog SP Lado B serviu de base para o TCC da ECA-USP “Balada Infinita”, um livro-reportagem sobre a vida noturna na cidade de São Paulo no início do século 21. São-paulino, sonha com o dia em que conseguirá ir de metrô até o estádio do Morumbi.
Neste texto, Paulo faz uma declaração de amor (e lança algumas críticas) a Moema, o bairro onde passou parte da vida, em São Paulo, e conta como caminhar faz bem para o corpo, para a cabeça e para a relação entre ele e a cidade. Afinal, somos todos pedestres em algum momento, mas não nos damos conta disso (como explica Ricardo Montezuma nesta entrevista à Folha de S.Paulo).
Nostalgia do Shopping Ibirapuera
Caminhar pelas ruas de São Paulo é uma das coisas das quais mais gosto na vida. Paixão antiga, que remonta à infância. Apesar de haver um trauma original na história. Meu pai, aos sete anos, foi atropelado quando atravessava uma rua do bairro do Paraíso para comprar figurinhas na banca de jornal. Sobreviveu por milagre, ficou um ano de cama e até hoje tem sequelas. Ele tinha pavor que eu atravessasse a rua e tivesse o mesmo destino.
Quando eu descia para ir à banca de jornal comprar figurinhas ou gibis na banca da rua de baixo do prédio onde morávamos, em Moema, bairro nobre na zona sul de São Paulo, ele ficava na varanda, observando. Via se eu atravessava a rua prestando atenção, olhando pros lados. Afinal, não tinha semáforo na esquina de casa e os carros vinham com tudo pela alameda Jauaperi naqueles tempos loucos dos anos 80, quando havia menos carro, mas muito menos prudência no trânsito. Se eu vacilasse, ele me dava uma puta bronca.
Apesar de morar num dos bairros mais caros e “coxinhas” da cidade, naquela época era comum as crianças andarem na rua, até desacompanhadas. Ia para a escola, a quatro quadras de casa, sem problemas. Quando chegou a adolescência, também veio a vontade de “dar rolê” com a turma por aí. O Parque Ibirapuera era alcançável a pé ou de bike, assim como o Shopping Ibirapuera (frequentei muito o shopping quando era moleque). A molecada do bairro era tudo um bando de playboy mesmo – mas todos metidos a malandro. Nós ficávamos o dia inteiro na rua tentando expressar rebeldia com o quarteto skate-pixo-maconha-música ofensiva.
Da rua arborizada ao ônibus sucateado
Moema é um bairro estranho. Hoje virou sinônimo dessa urbanização cafona e fora de escala dos prédios “neojecas” de alto padrão, mas as suas ruas estão entre as mais caminháveis da cidade. Planas, calçadas geralmente em bom estado, arborizadas e, vamos admitir, cheia de ~gente bonita~ andando com o cachorro, indo comer em algum restaurante ou fazendo compras. Por isso, embora tenha se “varandagourmetizado” legal nas últimas décadas, a rua está sendo usada no bairro dos pássaros e índios.
Essa “caminhabilidade” definitivamente não se repete em outros bairros do centro expandido de São Paulo, como aprendi nas tantas andanças pela cidade que fiz desde então, hábito que logo percebi também ser uma terapia para quando minha cabeça se enche demais de minhocas.
Quando tinha uns 15 anos, Moema deixou de ser um bairro acessível financeiramente pela minha família, atingida em cheio pelos ventos econômicos ruins de 1999. Então fomos morar com meus avós lá para os lados da Vila Sônia, já quase na divisa de São Paulo com Taboão da Serra, no final da avenida Francisco Morato. Havia um pedaço do bairro, o Jardim Monte Kemel, mais com cara de periferia, casas mais humildes misturadas a pequeno comércio e gente na rua, e o Jardim Londrina, com mais característica de “bairro jardim” (Z1, 100% residencial, 100% casas, casas bonitas, arborizado e… com pouca gente na rua). De qualquer forma, a pequena rua, onde era a casa da minha avó, fora um belo playground para mim e para meu irmão na infância. Não sei se as crianças ainda brincam na rua Gabriel Antunes. Espero que sim.
O duro era sair do bairro e ir ao centro para encontrar meus amigos de Moema e começar a me aventurar por lados ainda pouco conhecidos da cidade – a começar pelo próprio centro. Ainda não havia corredor de ônibus na Francisco Morato nem Bilhete Único. Os ônibus, de viações que logo iriam à falência, caíam aos pedaços. Mesmo assim, pegava o ônibus pra atravessar o rio e curtir a parte da cidade onde as coisas aconteciam. Paulista, Augusta, Pinheiros, Vila Madalena, centro. Fiz o Ensino Médio no Mackenzie e matava aula para zanzar pelo centro, ir à Galeria do Rock, pirar naquela confusão maravilhosa de gente indo para lá e para cá nas ruas-calçadão sem carros.
“Happy hour ambulante”
Muitas vezes, aos sábados, estava de saco cheio de ficar enfiado em casa e saía sem rumo. Pegava o busão para atravessar o rio e ia andando de Pinheiros, ou ali da Cidade Jardim, até a Paulista. Ou então da Paulista descia a Augusta para o centro, só para explorar e conhecer pedaços da cidade ainda inéditos. Entrei na faculdade, comecei a trabalhar, mas mantive o hábito de andar. Dispenso ônibus e táxis quando tenho tempo para ir andando, absorvendo a cidade, sentindo suas cores, texturas, sons, cheiros, paladar. Sim, afinal andar dá fome e logo descobri o pernil do Estadão, o pedaço de pizza dessa padoca, a coxinha daquele boteco, o x-salada daquela lanchonete. Todos eles viraram paradas estratégicas nos roteiros que comecei a construir para as minhas caminhadas.
Eu consultava, primeiro, o Guia de Ruas. Depois veio o Google Maps, para descobrir os caminhos mais interessantes de um ponto a outro. Voltei a morar no centro expandido, primeiro na região do Itaim e Vila Olímpia, agora em Perdizes, e muitas vezes consigo conciliar o sonho urbano supremo: ir a pé para o trabalho. Aconteceu quando trabalhei na Funchal e na Berrini, polos de atração do tipo de trabalho que eu faço, apesar das suas absurdas falhas urbanísticas.
Eu observava o caos por volta das 18h para pegar os meios de transporte que saíam de lá. Então eu ia a pé e chegava em menos de uma hora, passando pela tranquilidade residencial do “Brooklin Velho”, a poucas quadras da Berrini, mas Z1, tomando uma cerveja comprada no posto de gasolina, sentindo o cheiro das árvores, das damas da noite, do jantar sendo preparado nas casas. Hábito, rotina, coisas que você tem que aprender a gostar, e caminhar me ensinou que não é tão ruim manter certos hábitos.
De poder voltar a pé do trabalho para casa, desenvolvi algo que hoje chamo de “happy hour ambulante”. Em vez de sentar num bar para beber, ou me enfiar num ônibus ou metrô lotado, compro uma cerveja no mercado ou no boteco mais próximo, e vou andando, sem pressa, ouvindo rádio, curtindo a rua. Fiz isso voltando da Berrini para casa na Vila Olímpia, depois de Pinheiros para a Vila Olímpia, Pinheiros para Perdizes… E descobri que era a melhor coisa a fazer pela minha saúde mental.
Caminhando, repasso as coisas do dia na cabeça, os problemas do trabalho, da família, de casa, e sempre encontro soluções, tenho boas ideias e, acima de tudo, penso: “A vida é boa”. Poder caminhar, usando minhas próprias pernas, conhecendo coisas novas, vendo outras pessoas, é uma dádiva urbana. Renova, energiza. E também é um exercício, claro, principalmente agora que moro em Perdizes e trabalho na Pompeia, bairros famosos pelas ladeiras.
Tem segurança? Até tem
Mas e aquela pergunta: “É perigoso?” Olha, pelo número de horas que passei caminhando pelas ruas de São Paulo e pelos pouquíssimos problemas que tive até hoje, posso afirmar: É POUQUÍSSIMO PERIGOSO. OK, sou um homem, alto, “largo”, barbado, dizem alguns que com cara de maluco. Isso é um fator quase certeiro de garantia de segurança. Sim, já fui abordado inúmeras vezes por noinhas e doidões em geral.
A região do Largo da Batata, o final da Paulista, a Augusta sentido centro, a Santa Cecília e vizinhanças do Minhocão, são, sim, lugares que atraem todo tipo de gente, inclusive mal intencionados. Mas posso dizer que nunca sofri violência. Na maioria das vezes levei o maluco na conversa sem maiores riscos. E olha que posso dizer que já andei em todos os horários do dia e da noite, em regiões consideradas “barra pesada” (mas do centro, né? Eu sei que na periferia o papo é outro), inclusive voltando da balada, de madrugada, por lugares desertos.
Dá um medinho às vezes? Até dá, mas rola uma adrenalina também, a sensação de estar sozinho num lugar em que, durante o dia, tem um monte de pessoas andando. E ainda tem o silêncio da madrugada, o ar fresco (e menos poluído?)… Tudo isso dá um prazer especial. Claro, ter tomado umas tantas antes de andar também ajuda.
Problemas com a lei também foram raros e tranquilos. Afinal, eu sou branco e não sou mais nenhum adolescente. Já tomei alguns poucos “enquadros” da polícia, mas em todos os casos os policiais foram, na medida do possível, respeitosos. Mais perigosos são os carros mesmo (e motos, ônibus, caminhões e, sim, bikes). É preciso ficar sempre num certo estado de alerta. Eu adoro andar ouvindo música, mas admito que esse seja um comportamento de risco. As buzinas que tanto irritam e tento anular com os fones de ouvido podem me salvar a vida um dia. Geralmente procuro ouvir rádio, num volume que dê pra ouvir o barulho à volta. Gosto do rádio porque dá aquele tom de “trilha sonora da metrópole”, com as informações sobre o trânsito (ah, o prazer de ouvir o caos no trânsito enquanto ando a pé), tempo, notícias da cidade, futebol.
Sommelier de calçadas? Por que não?
As calçadas podem ser bem perigosas. Já torci o pé algumas vezes em algum buraco ou calombo, geralmente formado por raízes das grandes árvores que eu gosto tanto, mas que não deviam ter sido plantadas numa calçada urbana. Os bairros mais residenciais, principalmente os Jardins Europa, América e Paulistano, o Alto de Pinheiros, o Pacaembu, o City Lapa e o City Butantã tem de longe as piores calçadas, apesar das ruas tranquilas, arborizadas e agradáveis para andar.
Por isso, muitas vezes vou pela rua mesmo, como é hábito no interior e nas periferias, onde muitas vezes a calçada é um conceito abstrato. Mas, no coração de São Paulo, a visão de um pedestre andando pela rua pode ser uma afronta para os motorizados mais convictos, e é preciso manter a atenção redobrada.
Após dar prioridade para os ônibus e as bicicletas, a Prefeitura de São Paulo acaba de anunciar um também muito bem-vindo projeto para melhorar e ampliar as calçadas da cidade. Vamos torcer para que funcione, mas o problema crônico das calçadas de São Paulo não tem solução fácil.
Os postes são um obstáculo, mas o custo de enterrar a fiação é proibitivo. As árvores grandes também atrapalham bastante, mas para removê-las e plantar árvores mais adequadas às calçadas também vai custar muito tempo e dinheiro.
E, mais importante: a lei determina que as calçadas em frente a propriedades particulares são, em geral, responsabilidade dos proprietários.
Há algumas iniciativas para mudar essa legislação, mas também não devem sair do papel tão cedo. Também é difícil querer que a prefeitura assuma as calçadas da cidade inteira, com orçamentos sempre apertados. Outro problema crônico são as calçadas em ruas mais inclinadas, que viram escadas terríveis porque toda casa faz sua calçada com inclinação para permitir a entrada dos carros nas garagens, e não para as pessoas andarem.
Enfim, não dá pra classificar São Paulo com outro adjetivo que não “péssima” para os pedestres. Mas, mesmo assim, dá pra caminhar pela cidade, é menos perigoso e mais prazeroso do que o senso comum imagina. E, quanto mais gente vencer o medo e andar, melhor. Mais gente vai cobrar melhorias nas calçadas. Também aumentará o respeito ao pedestre e, talvez, a segurança para andar pelas ruas da cidade. Keep walking!