por Bianca Antunes
Um estudo da ONU mostrou que 54% da população mundial já mora em cidades, um índice que deve chegar a 66% em 2050. Se isso parece muito, no Brasil é ainda mais acentuado: chegamos a 85% de seres urbanos. É impossível falar do futuro sem pensar nas metrópoles e no papel que elas exercerão nas nossas atividades pessoais e profissionais. A cidade será o ambiente que nos oferecerá (ou tirará) qualidade de vida. Falar sobre isso é urgente, para adultos e para crianças.
Hoje pouco se discute sobre o espaço urbano, a menos que surjam medidas polêmicas que mexam com o dia a dia do cidadão, como a construção de ciclovias, corredores de ônibus, abertura de ruas para pedestres, diminuição de velocidade nas avenidas. Todas elas medidas que mexem com o privilégio das pessoas. Ou melhor, dos carros. Mas os argumentos desses debates normalmente se baseiam mais na experiência pessoal ou nos problemas que acarretam a curto prazo do que em estudos sobre o urbano, em medidas adotadas em outras cidades do mundo, em um reconhecimento sobre o que é a cidade, como funciona e, principalmente, o que pode ser.
Essa situação é uma das consequências da grande lacuna que existe entre os arquitetos/urbanistas e a sociedade, provocada, principalmente, porque a leitura do espaço urbano é ensinada apenas nos bancos das faculdades de arquitetura. Uma discussão que precisa ser estendida: se todos vivemos na cidade, é preciso começar a questioná-la, baseados em conceitos debatidos e testados pelo mundo.
Vontade de discussão existe. Algumas ações da sociedade civil, por exemplo, começam a discutir decisões até então vistas como normais, como a construção de arranha céus em terrenos que poderiam ser um espaço público – vide movimentos como o Ocupe Estelita, em Recife, ou o Parque Augusta, em São Paulo. Mas isso deve seguir avançando e atingir diferentes setores da sociedade. Um dos caminhos desse avanço é chegar às futuras gerações que terão sua qualidade de vida dependente das megalópoles – e que irão construí-las replicando os modelos que conhecem. É preciso criar esse olhar desde os bancos do ensino básico, pois se o ensino de arquitetura e da cidade começar pela criança, as cidades têm a chance de receber, no futuro, um olhar mais crítico e apurado de quem a constrói, na busca de melhores soluções urbanas.
Passar a perceber, desde cedo, que a qualidade do espaço pode mudar comportamentos, por exemplo, é uma maneira de questionar o lugar em que vivemos, ou outros que visitamos, compará-los, buscar propostas para cidades mais humanas, mais vivas, construídas para as pessoas usufruírem delas sem medo. Cidades construídas para pessoas.
Como deve ser esse ensino ainda pode e deve ser muito debatido. E precisa começar logo. No Brasil, não há nenhum programa pensado para isso, mas na Finlândia a arquitetura está no currículo escolar, com conteúdos separados de acordo com a idade. Aulas de desenho, composições, maquetes, construções que trabalhem o equilíbrio, o balanço e a posição das construções na cidade, por exemplo, podem ser feitas nas escolas ou em cursos especiais desenhados para isso. E não é só para os pequenos finlandeses. Publicações sobre arquitetura e cidades pipocam pelo mundo, principalmente em língua inglesa. No Brasil, não há nada.
É preciso abrir o olhar das crianças para o mundo em que vive, a cidade que ela habita, a casa onde mora, e a relação de todos entre si, e dela com todos. Afinal, são essas relações que se traduzem em qualidade de vida na urbe.
Uma qualidade que se manifesta desde já, pois a cidade precisa acolher as crianças. Ser planejada do ponto de vista da rua, onde as pessoas se desloquem a pé, onde os meninos e meninas não vejam a cidade apenas da janela do carro, mas caminhando pelas calçadas. Essa relação de pertencimento instiga os pequenos cidadãos a entendê-la e, sendo sua, a cuidá-la. Projetos realizados pensando nessa escala do pedestre são importantes para recuperar a relação entre as pessoas e a cidade. Em Medellín há uma praça que te convida a tirar o sapato: chama-se praça dos pés descalços. Tirar o sapato no espaço urbano tem um significado muito forte de confiança com a cidade.
Bianca Antunes é editora da revista AU – Arquitetura e Urbanismo desde 2009 e escreveu livros de arquitetura pela editora C4 e BEI, organizou o livro Entrevistas (Editora Pini) e colaborou com o Ministério da Cultura da Holanda na atualização de um mapeamento cultural brasileiro na área de arquitetura (2015). Ao lado da arquiteta e jornalista Simone Sayegh, lançou o Casacadabra, um livro de arquitetura voltado para crianças de onde vieram as imagens que ilustram esse artigo. Para conhecer melhor o projeto e colaborar, veja a campanha do livro no Catarse. Acompanhe o projeto também pelo Facebook e Instagram.