A população da Dakota do Norte talvez pense com mais reservas antes de organizar (mais) uma manifestação. Um projeto de lei apresentado por deputados republicanos prevê que um motorista não seja processado por ferir ou até matar uma pessoa que esteja obstruindo uma via dentro do estado. O texto não inclui choques intencionais, mas mesmo os causados por negligência estão liberados.
O projeto diz “um motorista de um veículo motorizado que negligentemente causar ferimento ou morte em um indivíduo obstruindo o tráfego de veículos em uma rua, avenida ou rodovia pública não deve ser responsabilizado por qualquer dano”. Em outro trecho da carta, reforça essa ideia, repetindo quase toda a frase, mas com “não é culpado de qualquer ofensa” no final.
Para regular quando um indivíduo “está obstruindo o tráfego”, os deputados incluíram orientações de como um pedestre deve se posicionar na via.
– Onde houver uma calçada e seu uso é possível, é uma infração qualquer pedestre caminhar ao longo de uma via adjacente;
– Onde a calçada não estiver disponível, qualquer pedestre andando ao longo da via deve apenas ficar no acostamento, o mais longe possível da beirada da via;
– Onde não houver nem uma calçada, nem um acostamento, qualquer pedestre caminhando pela via deve ficar o mais próximo possível da margem externa da via e, em uma via de mão dupla, deve ficar apenas no lado esquerdo;
– Exceto onde em casos previstos nessa lei, qualquer pedestre em uma via via deve ceder passagem para os veículos.
Claro que uma pessoa deva tomar cuidado ao caminhar em uma rua ou estrada, sobretudo em locais com vias rápidas. Mas a lei á absurdamente restritiva em relação aos direitos dos pedestres e até tira deles a preferência de uso da pista (algo que existe até nas grandes cidades brasileiras, ainda que poucas vezes seja respeitado).
A questão é que o alvo não são pessoas caminhando pela rua, mas manifestantes ocupando a rua. E isso não é conclusão minha, mas o comentário do deputado estadual Keith Kempenich, um dos autores do texto, ao Bismarck Tribune, principal jornal de Dakota do Norte. “Estamos mudando o ônus da prova do motorista para o pedestre. Eles não estão lá para os protestos, estão intencionalmente se colocando em perigo”, afirmou. Segundo ele, uma resposta era necessária após grupos bloquearem e se reunirem ao longo de estradas, causando problemas para motoristas que tentavam passar.
Protestos têm sido algo comum na Dakota do Norte. O Campo Petrolífero de Bakken passou a ser bastante explorado nos últimos dez anos, e ele é tão produtivo que reduziu pela metade as importações de petróleo dos Estados Unidos.
A Dakota do Norte se tornou palco de uma corrida pelo petróleo. Entre investidores e trabalhadores comuns, milhares de pessoas foram ao estado (um dos menos povoados dos EUA) em busca de oportunidades. O governo local tem sido extremamente amigável às necessidades das empresas, a ponto de criar todas as condições para elas atingirem suas metas financeiras e até virar o tema de um episódio do programa “Last Week Tonight” (vídeo em inglês).
Isso é bom para os empresários do setor (e não há nada de errado em se ganhar dinheiro), mas isso acabou chegando ao limite de se fazer vista grossa para questões ambientais e de segurança do trabalho. O solo de fazendas na região foi inutilizado, levando milhões de dólares de prejuízo aos fazendeiros, e acidentes fatais são recorrentes nas áreas de exploração de petróleo.
A gota d’água foi o anúncio da construção de um oleoduto ligando os Campos de Bakken ao estado de Illinois, passando por baixo dos rios Mississippi e Missouri, do lago Oahe e da reserva indígena Standing Rock. A comunidade indígena considera que a obra representa uma ameaça à qualidade da água e a seus cemitérios. Sem conseguir alterar o projeto, os índios passaram a organizar protestos nas estradas do estado, principalmente as que são utilizadas por veículos da indústria de petróleo, desde abril de 2016.
A lei que permite atropelamentos, mesmo que por negligência, de pessoas que ocupem a via pública ainda precisa ser aprovada pelo legislativo da Dakota do Norte. A reação negativa da opinião pública pode mudar o rumo da votação, mas não mudará o fato de o governo continuar fazendo de tudo em favor da indústria do petróleo. Até contrariar o bom senso.
O texto foi publicado pelo Rodínia.