Quando o prefeito Fernando Haddad encaminhou à Câmara Municipal em janeiro um projeto de lei com o objetivo de implantar a eleição direta para os 31 subprefeitos da cidade de São Paulo, as reações foram as mais diversas. Adversários políticos reagiram. Marta Suplicy, que se candidatará à prefeitura pelo PMDB, disse ser um “engodo populista”, enquanto Andrea Matarazzo, pré-candidato a prefeito pelo PSD, disse que a proposta “é um factóide”.
Leis polêmicas não costumam ser aprovadas rapidamente, ainda mais em um cenário de recuo na arrecadação, que tem impedido o governo Haddad até mesmo de contratar funcionários para cargos estratégicos. O prefeito chegou a dizer, em palestra para auditores e analistas de políticas públicas em março, que “em caso de reeleição, faria a eleição direta dos subprefeitos pro decreto, porque a nomeação dos subprefeitos é uma prerrogativa do prefeito e pode ser delegada para a população”. Sua disposição em debater o assunto certamente colocará a questão da votação direta para as subprefeituras como uma pauta relevante no processo eleitoral que se avizinha.
Prova disso é a realização, em 13 de maio, do seminário “Eleição direta para subprefeito: os desafios para a descentralização da cidade”, realizado pela Escola de Governo São Paulo. Mas, antes de debater o que foi discutido no seminário, é necessário explicar para que serve uma subprefeitura, qual é o seu papel dentro da administração pública, especialmente para quem não é de São Paulo e não tem convívio cotidiano com esse tema.
Para quem é de fora de São Paulo: Pra que serve uma subprefeitura?
Imaginem que São Paulo é uma cidade com mais de 11 milhões de habitantes e está conurbada com uma região metropolitana com cerca de 20 milhões de habitantes. E que a população do município aumentou exponencialmente entre 1950 e 1980 (de 2 para 8,5 milhões de habitantes), chegando a representar sozinha mais de um terço da população do estado, conforme o gráfico de evolução populacional abaixo.
Mas o crescimento da população paulistana no período, apesar de dramático, foi apenas parte do crescimento da região metropolitana. Em 1950, existiam 420 mil habitantes nas demais cidades da Grande São Paulo. Em 1980, esse número aumentou em quase 10 vezes: eram 4 milhões e 100 mil pessoas. Isso diz muito não só sobre esses municípios, mas também sobre a natureza do crescimento urbano da metrópole no período: entre 1950 e 1980 as grandes áreas livres das periferias de São Paulo se tornaram conurbações com os municípios vizinhos, de forma completamente desordenada, e essa questão se tornou um problema administrativo não só para as prefeituras, mas também para os demais entes federativos, uma vez que a gestão pública no Brasil vivia um momento de extrema concentração de recursos na União por conta da ditadura militar.
Na década de 80, porém, as coisas mudaram. A dívida externa brasileira explodiu, o regime militar deu lugar ao governo civil de José Sarney, e, nesse contexto, surgiu a Constituição de 1988. Uma característica muito específica da Carta, em relação às demais da história do país, é que ela tentou promover a descentralização na arrecadação e no repasse de recursos públicos, conferindo maior poder aos estados e municípios em relação ao governo federal, em um novo pacto federativo.
Nessa época, a cidade de São Paulo já tinha 9,5 milhões de habitantes, e os demais municípios da Região Metropolitana eram moradia mais de 6 milhões de pessoas. Com novas atribuições e recursos para os municípios, era quase impensável centralizar toda a estrutura administrativa no prédio da prefeitura, no centro da cidade. Imaginem o tempo que levaria pra regularizar um lote, para tapar um buraco ou para a prefeitura atender uma demanda nos extremos da cidade.
Com isso, a administração da época, de Luiza Erundina, aproveitou a estrutura criada pela primeira tentativa de descentralização da máquina pública paulistana: as administrações regionais, criadas em 1965 e regulamentadas pela Lei Municipal n.º 7858, de 1º de março de 1973. Em março de 1991, foi promulgada a Lei Municipal nº 10.932, que consolidou o papel das administrações regionais e consolidou a divisão geográfica da cidade de São Paulo.
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No entanto, o conceito de subprefeitura só surgiu em São Paulo mais de dez anos depois, na administração Marta Suplicy. Elas foram criadas pela Lei Municipal nº 13.399/2002 com o objetivo de fortalecer ainda mais a gestão em âmbito local, utilizando a estrutura das administrações regionais existentes e criando novas estruturas, em locais mais distantes do centro, onde não havia presença tão forte do governo. Nessa época também foram feitos investimentos em equipamentos públicos nas extremidades da cidade, como os CEUs, que não foram apenas inserções da máquina pública na periferia, mas tentativas de consolidar o modelo de administração descentralizada da cidade.
No entanto, o Brasil tem uma tradição de centralização administrativa muito forte, e o modelo das subprefeituras acabou esvaziado. Algumas estruturas cruciais para o funcionamento da cidade, como as de saúde e educação, montaram coordenações de atendimento totalmente independentes da administração local, e até hoje não existe uma padronização para o funcionamento das subprefeituras. É freqüente a confusão entre funcionários de diferentes subprefeituras sobre as atribuições da administração local, e isso afeta diversos serviços: a manutenção de praças e outros equipamentos públicos, a sinalização viária, a limpeza das vias, o recolhimento de veículos abandonados ou de entulho, as operações tapa buraco.
Nesse contexto, a proposta que contempla a eleição direta para subprefeitos foi apresentada como parte de um projeto maior, que quer remodelar as subprefeituras, dotando-as de um corpo técnico mais qualificado e de uma estrutura política própria, com suporte central para suas operações. E essa estrutura política mais qualificada tem um objetivo: a descentralização administrativa, acompanhada da padronização de procedimentos.
No projeto apresentado por Haddad, o mandato do subprefeito eleito terá dois anos, e os pleiteantes ao cargo terão que passar por um curso de formação política para entender minimamente sua função como eventual subprefeito. No entanto, o candidato tem que estar filiado obrigatoriamente a um partido político, repetindo um erro recorrente ao projeto de 2004. O objetivo alegado do projeto é centralizar os aspectos da administração que não são bem executados pelas subprefeituras e concentrar a atuação delas na administração local, fornecendo uma equipe técnica que facilite a execução das ações por parte do subprefeito eleito.
Esse foi o assunto do seminário “Eleição direta para subprefeito: os desafios para a descentralização da cidade”, ocorrido em 13 de maio no prédio da Ação Educativa, promovido pela Rede Nossa São Paulo, pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, pela Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo e pela Escola de Governo da Prefeitura de São Paulo.
A Discussão
Uma das questões mais importantes ao se discutir gestão regional em São Paulo é a diferença dos indicadores sociais entre bairros como Moema (IDH de 0,962, maior até que o da Noruega) e Marsilac (0,701, similar ao de Botsuana). Oded Grajew, da Rede Nossa São Paulo, usa o país escandinavo como exemplo de um eixo de desenvolvimento bem sucedido a partir de sistema democrático participativo, educação pública de qualidade e a menor desigualdade social possível.
Uma proposta como a da eleição de subprefeitos poderia levar a esse caminho, mas ainda se está longe disso. “São Paulo não se sabe ainda nem qual parte do orçamento municipal é destinada a cada distrito do município”, afirma Grajew. A estrutura das secretarias não melhora a situação. “São muito segmentadas entre si, incapazes de um planejamento integrado, e uma descentralização só faria com que isso se estendesse às subprefeituras, em escala menor”, reforça Valter Caldana, diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie.
Essa questão ficaria ainda mais delicada porque as subprefeituras paulistanas não têm autonomia de orçamento e de ação. Assim, funcionam mais como trabalho de zeladoria da região. É o contrário do que ocorre em cidades como Buenos Aires, Viena, Paris e Londres, que também têm descentralização da gestão municipal, mas contam como conselhos populares eleitos diretamente, orçamento decidido de forma colaborativa e autonomia. Desse modo, acabam tendo poder de cuidar dos serviços básicos locais, enquanto a prefeitura é responsável pelos serviços estratégicos da cidade.
A necessidade de se pensar em uma estrutura para essas subprefeituras antes de se mudar a forma de definir seus comandantes é o principal argumento para Ermínia Maricato, professora da FAU responsável pela criação do Ministério das Cidades em 2003, criticar a proposta de eleição de subprefeitos. A arquiteta considera que há uma diferença entre as cidades do capitalismo avançado e as cidades do capitalismo periférico que nenhum modelo de descentralização administrativa vai dar conta.
“A descentralização administrativa, se fosse boa por si só, sem reformulações mais profundas, vai só aprofundar as desigualdades, e a prova disso são justamente os municípios periféricos das grandes regiões metropolitanas, como Mauá, Itaquaquecetuba, Itapecerica da Serra, Sumaré e Hortolândia”, comenta. O risco, para Ermínia, é a participação se tornar ilusória e formalizar novos bolsões de pobreza vítimas do clientelismo de políticos locais. “A descentralização só funciona com uma política urbanística integrada, feita para corrigir incongruências metropolitanas de São Paulo.”
A estrutura atual das subprefeituras acaba sendo ruim até na relação com movimentos sociais de cada comunidade. Para Caci Amaral, da Rede Nossa São Paulo e da Pastoral Fé e Política, os órgãos foram formatados de forma “capenga”, e, na maior parte das vezes, à margem dos movimentos sociais. “Formaram uma excrescência, a obrigação de os membros de Conselhos Locais serem filiados a partidos políticos. Agora, em 2016, a proposta de descentralização administrativa é apresentada novamente de forma unilateral pela prefeitura, sem negociação prévia com os movimentos sociais”, protesta.
Dessa forma, fica evidente que o projeto de descentralização carece de discussão, pois não é suficiente da forma que está colocada. A descentralização pode ser reacionária e higienista, no nível da cidade, e isso é expresso no papel das associações de bairros nobres de São Paulo em não tolerar “gente diferenciada”. Descentralização sem participação só vai gerar uma sociedade ainda mais injusta e fragmentada, com a justificativa retórica de que “cada um tem o seu lugar”.
Além disso, a tentativa de aumentar o nível de democracia nas demandas municipais é louvável, mas não vai resolver nada por si só. O enfoque deve ser metropolitano, e a discussão deve ser feita em conjunto com outros entes federativos, especialmente o Estado.