Sair do trabalho, ir para casa, almoçar com a família, tirar um cochilo e, enfim, voltar ao trabalho. Pessoas em outros lugares do mundo sonhariam em ter uma hora de almoço como a dos espanhóis, com parada estendida para permitir uma refeição em família e uma dormida no pico do calor vespertino. Uma tradição surgida em vilas na área rural do país, mas que há tempos já virou uma ficção nas grandes cidades. A ponto de já haver propostas de acabar com ela.
O tema ganhou força na última semana, quando o primeiro-ministro Mariano Rajoy incluiu a mudança da jornada de trabalho nas empresas espanhola no seu programa para as eleições de junho deste ano. Além disso, o líder do Partido Popular (centro-direita) propõe a mudança de fuso horário na Espanha, colocando o país dentro da mesma faixa de Portugal e Reino Unido. Como a chapa formada por PSOE e Ciudadanos (centro-esquerda) também havia colocado essa medida em sua proposta de campanha, os espanhóis estão muito próximos de ver o fim das duas ou três horas de almoço.
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Por mais que soe fantástico ter um intervalo tão grande no meio do trabalho, seus principais benefícios já se perderam nas grandes cidades. O trânsito e os compromissos profissionais e pessoais das pessoas diminuíram bastante a quantidade de famílias que conseguem aproveitar a hora do almoço para se reunir no meio do dia. Para muitos, mal dá tempo de ir e voltar para casa, quanto mais comer e cochilar. No final das contas, essas horas são usadas para resolver problemas (mesmo assim, com alcance limitado, pois o bancos, repartições e, dependendo da cidade, até o comércio também fecham) e comer fora.
A extensão da hora do almoço também tem efeito no final do dia, pois ela faz que a jornada de trabalho na Espanha termine às 19 ou 20h, duas horas mais tarde que no resto da Europa. Com isso, muitos pais precisam deixar seus filhos em creches particulares ou com alguma pessoa que cuide deles até mais tarde. Outros só chegam em casa depois que a criançada já foi dormir. A BBC fez uma boa reportagem com casos de espanhóis que sofrem por causa do horário de trabalho incomum.
A necessidade de conciliar o horário de trabalho com a vida pessoal virou até argumento de marketing. Em uma campanha lançada nesta terça, a cervejaria Heineken brinca com a dificuldade dos espanhóis de assistirem partidas de suas equipes na Champions League, principal competição de clubes do futebol mundial. Confira (vídeo em espanhol):
A mudança de fuso horário seria uma medida complementar. A Espanha utiliza um horário fora da realidade desde 1942, quando o ditador Francisco Franco adiantou os relógios do país em uma hora como um gesto de aliança com a Alemanha de Adolf Hitler. No entanto, o território espanhol está na mesma linha das Ilhas Britânicas e de Portugal, que estão uma hora atrás da Europa Central.
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Com esse fuso irreal, o auge do calor não ocorre ao meio dia, mas entre 13 e 14h. Além disso, amanhece e anoitece muito tarde no país, o que incentiva a adoção de jornadas que terminem às 19 ou 20h. Tanto que até há uma diferença de expressões no espanhol da Espanha e da América Latina: na Europa, se diz “oito da tarde”, e não “oito da noite”, versão mais corrente entre os latino-americanos.
No final da década passada, a Iberdrola, empresa de distribuição de gás e energia elétrica, decidiu mudar a jornada, fazendo seus funcionários entrarem às 7h15 e saindo às 15h. Houve aumento de horas trabalhadas, mas os empregados da empresa passaram a ter mais tempo livre para dedicar à vida pessoal.
Por mais romântica e charmosa seja a ideia da siesta, ela já foi engolida pelo cotidiano das grandes cidades. O que sobrou foi uma parada de almoço desproporcional que atrapalha mais que ajuda. Tanto que é uma das poucas coisas em que os partidos de direita e esquerda parecem concordar na Espanha.