Saskia Sassen investiga investimentos nas cidades que são pouco visíveis, mas contam uma história sobre a redução na porção habitável, dos espaços públicos e até aponta para um possível processo de desurbanização das metrópoles. A professora de sociologia da Universidade Columbia, Nova York, pesquisa tendências como a compra de grandes porções de território em centros urbanos por poderosos investidores estrangeiros como, por exemplo, as propriedades da família real catariana no centro de Londres.

A cientista social holandesa acredita que o espaço urbano, como uma condição complexa e completa, está sob ameaça. Saskia tenta entender porque milionários chineses estão interessados em terras ao longo de um canal em Amsterdã, porque os sauditas estão comprando grandes propriedades de território rural e qual o efeito desses fenômenos no futuro das metrópoles. “Nós somos, antes de tudo, seres urbanos, antes da religião, antes da nacionalidade”, defende. A cidade é onde os poderosos podem ser ativos transformadores, e também o ativo do qual eles estão comprando partes para decidir depois o que fazer com elas.

Saskia Sassen veio ao Brasil para o “Seminário Internacional Cidades e Territórios: encontros e fronteiras na busca de equidade”, organizado pela Fundação Tide Setúbal e o jornal Folha de São Paulo, e nós aproveitamos para conversar sobre os interesses envolvidos nesses processos e como ela vê o futuro das grandes cidades.

Camila Montagner: Em sua palestra, você destacou o crescimento da proporção de solo urbano que é adquirida por grandes investidores estrangeiros. Você acha que isso tem contribuído no fato de ser cada vez mais comum prefeitos fazerem viagens de caráter oficial para o exterior?

Isso está realmente acontecendo, é algo que começou há 30 anos. Mas eu vejo um elemento novo nisso, que é a preocupação dos prefeitos dessas cidades sobre questões ambientais e de cooperação. Isso é um novo modo de realizar uma prática antiga. A antiga é que a cidade de Nova York teve um departamento de desenvolvimento por 30 anos – não é novo, não é de hoje. Eles estão agindo para atrair negócios, fazer com que empresas estrangeiras invistam em Nova York. Hoje nós temos outra demanda que é também sobre desenvolvimento e cidades aprendendo umas com as outras. E isso não são apenas transações comerciais, é informação que o prefeito pode usar para implementar coisas.

CM: Que tipo de coisas?

O prefeito de Nova York foi até Paris para ver como funcionava o compartilhamento de bicicletas, pois a capital francesa foi a primeira a ter bicicletas pela cidade que você podia simplesmente usar. Ele voltou e implantou o sistema, e hoje muitos turistas utilizam. Eu vejo uma diferença entre o que está acontecendo hoje, é muito bom se você está com uma ideia e está interessado em implementá-la. Não são apenas negócios, como antes. São negócios e conhecimento compartilhado.

Ubiratan Leal: Você disse que a família real do Catar possui uma boa parte da região central de Londres, assim como famílias reais da Arábia Saudita, dos Emirados Árabes e milionários chineses. Quanto dessas propriedades urbanas não são apenas sobre investimentos, mas também sobre ganhar poder político?

Os catarianos têm um projeto muito ambicioso, eles estão construindo uma espécie de nova rota da seda. Eles compraram grandes porções de território rural nos Bálcãs, uma área muito pobre da Europa. Se você olhar o que eles fizeram foi construir prédios em pequenas cidades. Criaram um assentamento mercantil comprando terras, construindo prédios etc. É um processo muito maior que apenas a compra da terra. Comprar terreno em Londres é um investimento e eu realmente penso que é algo valioso. Mas eu notei que o movimento do Catar e dos sauditas é de outra modalidade:  comprarem grandes porções de área rural. Eles não estão fazendo nada lá e, ao mesmo tempo, estão construindo uma rota muito sólida.

UL: E qual seria o objetivo deles com esse movimento?

Não acredito que seja apenas um investimento. É um investimento, mas também há outras coisas acontecendo sob o controle deles. Eu realmente penso que os sauditas retêm a posse de muitas propriedades significativas – falo sobre mansões – por anos e anos. Nós fizemos fotos do interior de uma, que estava sempre vazia e havia árvores crescendo lá dentro. E eles pagam os impostos delas. Há muitas coisas acontecendo, muitas modalidades que não são apenas investimentos. Ter e comprar território urbano é algo a mais, é uma história mais complicada. Estamos lidando com essa perda massiva de território urbano inadvertidamente como se não houvesse nada de errado. Essas são questões profundamente estruturais que nós estamos presenciando e já são conhecidas – você sabe que eles estão comprando, “é um investimento”.

UL: É o mesmo que fazem os chineses investindo em urbanização das cidades africanas?

Os chineses estão se ocupando de questões específicas. Eles estão sempre construindo estradas, construindo portos, hospitais e explorando isso. Essa é uma forma de imperialismo marcado por uma lógica de micro extração. Não é o imperialismo superestrutural, como era, por exemplo, o britânico, que queria criar trabalhadores que prestassem serviços ao império, e o francês, com sua missão civilizadora. Esses foram complexos imperialismos que nós tivemos no passado. O que nós estamos falando nesse caso é de extração pura. Eles estão consolidando uma base forte em um lugar onde supostamente ela terá uma vida longa e próspera. Como eles usarão isso? Qual seria a melhor forma de desenvolver isso? Por enquanto o jeito mais fácil é dizer: vou comprar ou construir propriedades. Você não diz “comprar solo urbano”. Esses atores têm uma complexidade muito grande, ninguém os conhece perfeitamente. Por que esses chineses estão investindo nessas construções e terras? Eu acho que eles pensam que há boas razões e algumas delas eu nem sei quais são. São muitos fatores que compõem esse cenário.

CM: Há cidades que estejam lutando para frear a venda de grandes porções de território para investidores estrangeiros?

Não, é algo realmente difícil. Nova York tem uma elite poderosa que se importa um pouco com a cidade, e não luta contra isso. Isso é realmente um problema? Isso não é algo incomum, é outra coisa. Eu não vejo. Outra parte da história é que os prefeitos estão tendo mais custos e menos dinheiro. É um momento muito difícil. As cidades estão mais pobres e eles têm mais e mais encargos. Elas têm muitos empregados que são planejadores radicalmente restritos, preocupados com um aspecto em particular. E tem todo um outro mundo que eles desconsideram. É realmente interessante, em termos de liderança. De um lado, eles cortam cabeças porque estão afundando em pobreza, porque há mais e mais pobreza, mais doença e menos dinheiro. É um momento muito difícil nessa área. Tudo que eu sei é que as cidades são incrivelmente complexas e completas: elas arranjaram formas de sobreviver a todos os tipos de coisas, coisas que mataram muitas das populações, guerras, bombas, até que não sobrasse quase nada. É muito difícil, tudo o que aconteceu no passado e isso que estamos passando hoje.

UL: Se cidades de países desenvolvidos estão passando por problemas de orçamento, o que se pode dizer sobre cidades como as brasileiras, que são muito disfuncionais e precisam redesenhar muitas coisas com pouco dinheiro? Como é possível administrar isso?

É realmente desafiador. Em Nova York, há falhas na pavimentação em todo canto, mesmo em áreas ricas. Nova York é uma cidade global, uma cidade do futuro, como pode nessa cidade tão rica nós termos pavimento que não foi reparado? Vou te dar um exemplo: um dia, há seis meses, subiram chamas pelo pavimento em uma área central de Londres, Holborn. Foi absolutamente extraordinário, se transformou em um grande incêndio que subiu pelo pavimento porque embaixo dele havia uma madeira muito antiga.

Pense nisso como um microcosmo de um todo decadente que está sob muitas camadas de cimento. Demorou cerca de seis meses para aquele fogo chegar a explodir. É difícil acreditar que aquilo está vindo pelo cimento. Em Manhattan, grandes canos de esgoto explodiram em um bairro muito rico e tudo ficou coberto de merda. Como era uma vizinhança muito rica, eles consertaram, mas pense nos bairros pobres. Tem coisas explodindo em todo canto da cidade. Então, quando olhamos para toda essa infraestrutura antiga que foi ficando embaixo das novas, vemos que administrar uma cidade é um desafio. O famoso incêndio no metrô de Londres há 20 anos começou por causa de velhas madeiras que estavam enterradas bem fundo. O fogo queimou  lentamente, por muito tempo, a madeira muito sólida que havia ali. Para administrar uma cidade, é muito importante o que está bem aqui do lado das pessoas.

UL: O quanto essa proximidade se torna um desafio às prefeituras?

É possível governar um país e ter um desastre lá longe, mas não aqui do lado. É um desafio: precisamos de múltiplas formas de expertise, precisamos de pessoas que saibam como é a longa vida de algumas dessas infraestruturas. E isso está crescendo, vemos as cidades investindo dinheiro, muitos reparos sendo feitos em grandes centros por causa desse tipo de coisa. Não é algo imediatamente evidente. “Por que nós temos que deixar o pavimento, se tudo está perfeito?” Mas o que eles estão indo buscar está lá no fundo. Isso não é comunicado para a população, porque ela ficaria aterrorizada. É uma operação complexa, eu penso que é muito mais complicado que gerenciar um país. Todas as testemunhas do que acontece estão ali.