O que? Milton Keynes está na Inglaterra, mas, se fosse colocada nos Estados Unidos, ninguém estranharia. Ela foi criada em 1967 sob conceitos urbanísticos muito diferentes dos adotados tradicionalmente na Europa, com descentralização de habitantes e serviços e trama de ruas e bairros que favorecem o uso de carros. Para resolver o crescente problema de deslocamentos pelo seu centro, a cidade concluiu que transporte de massa não era a solução e testa veículos elétricos para duas pessoas.
Um pouco de Estados Unidos a 72 km de Londres
Nenhuma cidade inglesa está tão distante de Londres quanto Milton Keynes. A cidade não fica no extremo norte, na fronteira com a Escócia, ou na ponta da Cornualha, a oeste. Também não é uma ilha no Atlântico. Ela está a apenas 72 km da capital, pouco antes da metade do caminho para Birmingham. A questão não é geográfica, é conceitual. E, enquanto os londrinos se orgulham do metrô, têm no ônibus de dois andares um de seus símbolos e se acostumam a usar as bicicletas compartilhadas, em Milton Keynes o caminho é o transporte individual, mas com um carro para um uso diferente do convencional.
Na década de 1960, o governo britânico queria aliviar a pressão populacional sobre Londres. Com isso, surgiu a ideia de criar uma nova cidade, de médio porte, a noroeste da capital inglesa. O responsável pelo projeto urbanístico foi o arquiteto Derek Walker. Formado na Universidade da Pensilvânia, ele seguia as ideias de Melvin Webber, um teórico sobre as cidades do futuro e como elas seriam adaptadas às telecomunicações e à massificação dos carros. A inspiração foi em Berkeley, cidade na região metropolitana de São Francisco (Califórnia).
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O resultado disso foi uma cidade com cara de Estados Unidos no meio da Inglaterra. Milton Keynes é espalhada, com zonas residenciais espaçosas (ou seja, com espaço para guardar seu carro), zonas muito definidas, muitos estacionamentos nas regiões comerciais e rede viária feita para facilitar o uso de automóveis para o movimento pendular casa-trabalho. Era uma tendência da época, que pode ser vista em várias cidades norte-americanas e até em Brasília. A experiência inglesa funcionou por algum tempo, sobretudo porque a cidade manteve um tamanho compatível com o plano inicial (tem 250 mil habitantes).
No entanto, esse crescimento acelerou nos últimos tempos e ameaça sobrecarregar a infraestrutura. A prefeitura começou a estudar diversas opções, e o caminho adotado é bastante diferente da onda de transporte de massa e mobilidade ativa que se tem adotado pelas metrópoles do mundo. A cidade nasceu para carros, e de certa forma busca nessa vocação sua saída.
Milton Keynes iniciou testes com carros elétricos para duas pessoas. O Lutz Pathfinder foi desenvolvido pelo departamento de robótica da Universidade de Oxford em conjunto com a empresa RDM e a Catapult. Esse veículo não precisa de motoristas e circula a baixas velocidades, apenas duas vezes a de um ser humano médio caminhando na rua. A ideia não é ser rápido a ponto de substituir o carro tradicional, mas servir como um intermediário entre o automóvel e a caminhada.
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O funcionamento do sistema é simples. O Pathfinder tem o mapa do centro de Milton Keynes em seu sistema e cruza esses dados com os de sensores que identificam obstáculos pelo ambiente. A partir disso, ele traça o caminho para ir do ponto A ao B, de acordo com as coordenadas indicadas pelos passageiros. O carro elétrico seria público e operaria apenas para trajetos dentro da mesma área da cidade.
O objetivo é resolver o problema de mobilidade no centro de Milton Keynes. Devido a seu projeto urbanístico, a cidade não tem um centro tão adensado como suas vizinhas. A região é formada por grandes estruturas de lojas e escritórios, cercados por bolsões de estacionamento. Com isso, as distâncias são maiores que o normal, muitas vezes levando as pessoas a usarem carro para esse deslocamento. O Pathfinder serviria como um transporte público para essas viagens curtas, além de atender às pessoas com dificuldades de locomoção. Como a velocidade é baixa, ele poderia circular nas calçadas e passeios públicos, ao lado de pedestres.
Apesar de ser focado no centro, o projeto não é localizado. Ele seria integrado a um outro sistema, focado em carros semiautônomos que se conectam. Essa tecnologia ainda está em desenvolvimento e, por enquanto, ainda necessita da presença de um motorista por questão de segurança. Ela seria a responsável para os trajetos bairro-centro e ajudariam a aliviar os estacionamentos. Com isso, o centro teria novas áreas edificáveis e poderia se adensar mais, absorverndo as novas empresas que chegam à cidade.
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A iniciativa de Milton Keynes coloca os ingleses em boa posição no desenvolvimento de carros autônomos, uma disputa em que até o Google está envolvido e pode ser uma opção para o futuro dos transportes. No entanto, foge da ideia de incentivo ao transporte de público. E, para a cidade inglesa, isso foi um caso pensado.
Estudos realizados pelo município mostraram uma dificuldade grande em viabilizar economicamente o transporte de massa. Como a cidade é pouco adensada, não há áreas que concentre demanda por bondes ou monotrilho. Para todos os bairros serem atendidos, a cidade teria de construir várias linhas, e a quantidade de usuários não daria retorno a esse investimento. Mas o próprio o conselho municipal admite que também quer evitar um “rompimento significativo e uma mudança no jeito de ser da cidade”.
É uma atitude ousada de Milton Keynes, e que certamente fará muita gente torcer o nariz. De qualquer modo, é interessante ver até onde vai a iniciativa dos carros elétricos no centro da cidade e a do sistema de carros semiautônomos. Um eventual sucesso servirá de inspiração para cidades de médio porte que cresceram com a prioridade em carros, como tantas nos Estados Unidos (e no Brasil).