Por Brunna Castro*
Muitas metrópoles apresentam um número elevado de pessoas sem acesso à moradia. Em um município com as dimensões de São Paulo, a questão toma proporções ainda maiores. Segundo a prefeitura da capital paulista, existem atualmente “cerca de 890 mil famílias em assentamentos precários (favelas, loteamentos irregulares, núcleos urbanizados, cortiços, conjuntos habitacionais irregulares), vivendo sob algum tipo de inadequação”. Diante de um número tão alto, será que é possível garantir moradia adequada e também um acesso digno à cidade a todos que buscam viver nela? O que fazer para solucionar a questão?
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A prefeitura afirma que, no caso dessas famílias, “a maioria depende apenas de obras de infraestrutura e do processo de regularização fundiária para se integrar ao mercado formal”. No entendimento do governo municipal, “para zerar o déficit habitacional real hoje, seria necessária a construção de 230 mil moradias”. De acordo com os dados disponibilizados pela administração pública, hoje são 141 mil famílias cadastradas nos programas habitacionais municipais. Outras 28 mil famílias teriam sido removidas de áreas de risco e frentes de obras públicas e recebem o benefício do auxílio moradia.
Obs.: Segundo a Prefeitura de São Paulo, a secretaria de habitação conta com um planejamento de 100 mil unidades habitacionais, que estão com terrenos garantidos para a construção. Para isso, até o final deste ano, serão totalizados R$ 300 milhões em desapropriações de terrenos. Desse total, a Prefeitura afirma que já foram concluídas 8.586, outras 19.548 moradias estão com as obras em andamento, 18.968 estão com as obras prestes a serem iniciadas e 76.752 estão em fase de elaboração ou aprovação de projeto. É possível acessar o planejamento habitacional completo do município na ferramenta online Habisp Plus.
Antes de enxergarmos como solução apenas a construção de novas moradias, é preciso, porém, nos atentarmos ao fato de que o déficit habitacional é composto por fatores como habitação precária, coabitação familiar, ônus excessivo de aluguel e adensamento excessivo.
A questão dos aluguéis, como é possível notar no aumento entre 2011 e 12 no infográfico acima, tem se destacado no debate sobre o tema. “O aluguel subiu muito, tentando acompanhar o aumento dos preços. Então nós temos uma cidade onde muito mais gente está entrando nessa faixa do déficit, uma vez que paga mais do que deveria com essa despesa”, explica Paula Santoro, arquiteta urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Segundo ela, desse aumento está relacionado à lógica da cidade e com as políticas federais de incentivo ao financiamento habitacional, o que ampliou a capacidade de pagamento das famílias. Com isso, o mercado imobiliário nas grandes cidades fica mais ativo, uma vez que existem mais famílias comprando. Além disso, mais do que uma mercadoria, a moradia é vista hoje como um investimento. “Se, por um lado, esse aspecto é visto pelo proprietário como algo muito positivo, essa característica, que só se sustenta porque a sociedade e as políticas a sustentam, inviabiliza a casa do outro”, aponta Beatriz Rufino, professora doutora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
“Há questões mais sérias que a nossa sociedade hoje nem está colocando em pauta, como mecanismos efetivos de controle do preço do aluguel”, exemplifica Rufino. “E numa posição até talvez utópica e mais contundente, de certa forma devemos desmercantilizar a moradia”. Em outras palavras, a professora da USP sugere que, em termos conceituais, se fale sobre “um pacto de sociedade para progressivamente não fazer da moradia essa mercadoria e potencial objeto de investimento e, de certa forma, garantir e priorizar a moradia enquanto valor de uso”.
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Para Santoro, o primeiro ponto a ser atacado é superar a política que coloca a propriedade privada como única solução. “A gente tem que ter soluções diferentes, precisamos pensar e inovar em forma de propriedade.”
Ela defende que os preços da terra sejam diminuídos, ou que, pelo menos, existam instrumentos que diminuam a diferença entre os preços de terras distintas. “Nós temos áreas muito valorizadas e áreas muito pouco valorizadas. Instrumentos que mexam com esses valores vão ajudar muito quem não tem condições financeiras”. Seguindo essa lógica, essas pessoas poderiam morar em locais que já contam com infraestrutura adequada.
Políticas concretas
Os instrumentos urbanísticos que existem hoje em São Paulo pressionam pela utilização da propriedade. Trata-se do que Santoro define como uma tríade: PEUC (Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios), IPTU progressivo no tempo e desapropriação com títulos da dívida pública. Os três funcionam como um processo, no qual a etapa seguinte depende da realização da anterior. “Tem um problema aí que esse instrumento nunca vai chegar ao final porque a gente já não pode mais emitir títulos da dívida pública”, explica a urbanista.
Ela aponta também para o grave problema da especulação imobiliária que existe em São Paulo, onde muitos proprietários não estão alugando imóveis para esperar que o mercado melhore e alguém alugue por um preço mais alto. “Nós temos poucos instrumentos para pressionar os proprietários para colocarem esses imóveis no mercado; e pior, quando eles entram no mercado, pode ser que sirvam para fazer habitação de alta renda”. Ou seja, nós não temos uma combinação de instrumentos para fazer com que o imóvel efetivamente, se for a mercado, sirva para o interesse público ou coletivo, segundo Santoro.
Dentro da questão dos terrenos subutilizados, não utilizados ou vazios, Santoro destaca que muitos deles são públicos. “Fala-se muito pouco sobre isso, mas existem terras da União historicamente desocupadas, muitas no entorno das áreas ferroviárias”, afirma. Ela ainda aponta que existem edifícios do INSS que não são ocupados e permanecem vazios por décadas; terrenos do Tribunal do Estado, da Justiça e também da USP. No caso da universidade, são terrenos que foram cedidos para a USP por conta da Herança Vacante, na qual o patrimônio que não possui herdeiros é direcionado ao Estado. “Um ponto da especulação imobiliária é pública, olha que absurdo”, diz.
E como uma combinação de instrumentos que sirva ao interesse público seria viabilizada? “Existem instrumentos mais criativos, que misturam classes sociais no mesmo terreno, que exigem que ali exista um percentual de pobres junto com ricos e a gente vai criando uma sociedade um pouco mais misturada, sem diferenças de raça, de crença e de classe”, sugere Santoro. Instrumentos dessa natureza não servem exatamente para combater a especulação imobiliária, mas “ajudam a, no momento da transformação urbana, fazer uma cidade melhor distribuída”
Para a professora Beatriz Rufino, existem questões que não estão na pauta atualmente, mas que também podem e devem ser exploradas. No caso, conjuntos de políticas urbanas que envolvam mecanismos de controle de aluguel. Em Berlim, por exemplo, a tentativa mais recente, e que teve bastante repercussão, é fixar o preço dos aluguéis. “Há uma ideia dos instrumentos vigentes de um controle mais rigoroso da não ocupação dos edifícios vazios, mas todos consideram que a função social desses prédios é exercer qualquer atividade econômica e não necessariamente uma função de habitação para pessoas mais pobres”, afirma ela. “No fundo, ainda se aposta que o mercado vai resolver todas as condições e talvez o mercado não seja a resposta para a habitação de interesse social”.
Outro mecanismo que, agora segundo Santoro, permitiria o controle dos preços dos aluguéis é uma política de bancos de imóveis públicos. “Se você tem uma quantidade considerável de imóveis, é possível estabelecer neles um preço capaz de competir com o mercado”, explica. Dessa forma, o mercado é obrigado a abaixar os preços. Esse tipo de instrumento ajuda a pressionar os proprietários a alugarem por um valor mais acessível.
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Um debate nesse sentido, porém, não estaria na pauta do município de São Paulo. “Acho que é uma discussão que tem que ser lançada porque a cidade e a região metropolitana estão cada vez mais se inviabilizando para as pessoas mais pobres”. A professora acredita então que, enquanto a sociedade não observar o processo geral da questão do déficit, tudo que se investir na habitação tem, de certa forma, um caráter de mitigação. “Nunca se investiu tanto em habitação e a gente chega com o mesmo déficit de algum tempo atrás em cidades como São Paulo, como é que se explica?”, questiona Rufino. Além disso, as pessoas estão pagando caro para morar.
“Na verdade, não é uma decisão que passaria apenas pela atuação pública. É um problema de sociedade que não quer ter mistura social, que acha natural seu imóvel duplicar de preço em 5, 6, 7 anos”, afirma Rufino. Se o preço dos imóveis está aumentando, consequentemente o governo gasta mais para produzir habitação.
“O Estado pode continuar investindo em habitação, pode continuar investindo em leis como as Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) e como a cota de solidariedade, que têm que provocar essa mistura social, mas no fundo esse assunto tem que ser posto em pauta para a sociedade legitimar esses processos porque hoje eles não passam ou então são alterados”, conforme explica Rufino.
Centro da cidade
A moradia no centro da cidade, região que tem enfrentado um elevado processo de valorização nos últimos anos e conta com diversas ocupações de movimentos sociais, poderia ser estudada de forma diferente. “Esse tipo de moradia pode ser um lugar de passagem de determinado período da vida de um grupo vulnerável”, explica Rufino. Ela cita que, na Europa, a moradia de interesse social é vista muitas vezes como um serviço prestado pelo Estado, que não necessariamente fornece a propriedade privada.
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Para Rufino, toda a população é favorável à produção de novas casas. Mas, da forma como toda a produção imobiliária da cidade se coloca hoje, “o lugar que sobra para os pobres, nessa habitação que é produzida como um negócio, é o lugar na periferia”. “Ninguém quer pobre morando perto da sua casa, e o argumento é que ele vai trazer uma desvalorização no preço da moradia”, afirma. Ela também aponta que as políticas do governo de trazer as habitações para o centro, além de serem inviabilizadas pelo custo, têm uma resistência muito grande da sociedade.
Outro processo que pode ocorrer nesse tipo de política é a gentrificação. Quando a habitação está em um local muito bem localizado, como o centro, o mercado pode terminar por expulsar esse morador para substituí-lo por famílias de alta renda. “Isso é o pior da nossa política de propriedade privada porque você não consegue inverter a tese clássica da cidade dual, de centro-periferia, com os mais pobres morando mais perifericamente e os mais ricos na área central”, afirma Santoro. Sobre isso, ela afirma que não existem políticas que abordem o tema. “Tem gente inclusive falando para defendermos a urbanização de favelas em área central porque o mercado gentrifica menos quando é favela, por mais horrível que pareça essa expressão”.
“Nós temos que mudar essa chave, temos que trazer os mais pobres para as áreas centrais. Hoje em dia eles comutam, né? Eles vão e voltam”, cita Santoro. No caso, ela se refere à movimentação de pessoas diariamente da Zona Leste para a Sé na linha vermelha do Metrô. Um total de 2,5 milhões de pessoas realiza esse trajeto todos os dias. O número equivale a mais de duas cidades de Guarulhos. “É muita gente indo e vindo. Se a gente não mudar esses modelos de cidade, ofertando casas em áreas onde tem emprego e ofertando emprego onde tem casa, nunca vamos conseguir fechar a equação”.
*Brunna Castro tem 25 anos, gosta de andar a pé pelas ruas e acredita que as cidades podem (e devem) despertar afeto. É jornalista e busca contar histórias de e para pessoas.