O que é? A Cinemateca passou por muitos endereços em São Paulo: já esteve no Ibirapuera, no centro e até funcionando clandestinamente em uma casa. Um dos galpões acaba de sofrer um incêndio – o quarto da história do seu acervo, o primeiro do seu novo endereço. Além do fogo, a preservação da memória da produção audiovisual já foi ameaçada pela ditadura e pela falta de recursos.

Um acervo itinerante

A atual sede da Cinemateca Brasileira funciona em um conjunto de galpões que já foram a sede do Matadouro Municipal. O prédio é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo e suas atividades estão vinculadas à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. Além das mudanças de endereço ao longo de seus mais de 70 anos de história, desde que começou como Clube de Cinema da cidade, seu acervo já foi ameaçado por dificuldades financeiras, restrito a uma sala na Bienal e transferido para a casa dos irmãos Emilío e Lourival Gomes Machado.

Os dois estudantes da Universidade de São Paulo (USP) passaram a abrigar o Clube depois que ele foi fechado pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP) do Estado Novo, em 1941, um ano depois da sua fundação.  Organizado por alunos de filosofia da USP, tinha o objetivo de promover o estudo, o debate e a difusão da produção cinematográfica.

Reinaugurado em 1946 como segundo Clube de Cinema de São Paulo,  começou a constituição de um acervo próprio em 1948, viabilizado por meio da filiação à Federação dos Arquivos de Filmes (FIAF). No ano seguinte, o Clube foi incorporado pelo museu de arte moderna com a criação da Filmoteca do MAM (onde eram realizadas sessões para os sócios do museu), mas foi em busca de maior autonomia que em 1956 passou a se chamar Cinemateca. Os filmes em suporte de nitrato de celulose, material autoinflamável, foram apontados como a causa do primeiro incêndio, de 1957, que destruiu as suas instalações na Rua Sete de Abril, centro da capital paulista. Segundo texto publicado no Estado de S. Paulo, um terço dos rolos de filme do acervo foi destruído. Comovidas com o ocorrido, diversas instituições fizeram doações para apoiar a sua recuperação.

Endereço onde hoje funciona a Cinemateca já foi Matadouro Municipal

Endereço onde hoje funciona a Cinemateca já foi Matadouro Municipal

Sem sede oficial, seu acervo é dividido entre salas no Parque do Ibirapuera e as atividades da Cinemateca passam a funcionar no prédio da Bienal de São Paulo. Só em 1961 a Cinemateca ganha caráter de fundação e, em seguida, é criada a Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC), para obtenção de auxílio financeiro. No final dos anos 1960, a instituição foi desvinculada da FIAF e se mantinha com recursos escassos de doações e taxas de exibição quando foi atingida por outro incêndio, dessa vez comprometendo 20% de seu acervo (segundo nota publicada no dia 20 de fevereiro no jornal Estado de S. Paulo). Na ocasião, o então governador do estado, Abreu Sodré, estudou incorporar a instituição à emissora de televisão da Fundação Padre Anchieta, que então se chamava TV Educativa (hoje Cultura).

O prédio da TV Educativa, localizado também na rua Sete de Abril, sofreu um incêndio em 1965, dois anos antes do canal ser incorporado pela Fundação Padre Anchieta. Na ocasião, a programação passou a ser produzida em uma das instalações da TV Tupi (as duas emissoras faziam parte dos Diários Associados, empresa de Assis Chateaubriand), o primeiro canal de televisão brasileiro, que encerrou sua programação em 1980. A sede da emissora viria a ter 90% do seu equipamento destruído pelo fogo em 1986.

A Cinemateca foi reintegrada à FIAF apenas em 1979, mas continuou seguindo as normas da instituição durante o período de desligamento. No ano seguinte, o Centro de Operações ganha um endereço para atuar na documentação e pesquisa cinematográfica no Parque da Conceição, na zona sul. Um depósito climatizado e uma biblioteca foram instalados no local.

A sua incorporação pelo poder público voltou a ser discutida em função do terceiro incêndio sofrido pela Cinemateca, em 1982. Havia uma preocupação justificada em manter a autonomia da instituição, já que a mesma havia sido fechada pelo Estado Novo nos seus primeiros anos de funcionamento e o Brasil estava ainda sob ditadura militar quando as dificuldades financeiras foram agravadas pelo incidente.

No mesmo ano, o Cine Belas-Artes, um dos mais antigos cinemas de São Paulo, também pegou fogo em um incêndio cujo inquérito nunca foi concluído. O Cine Ritz-Consolação foi durante algum tempo auditório da extinta TV Tupi. A história da emissora também foi marcada por um incêndio, em 1978, que destruiu equipamentos recém-adquiridos e a tirou do ar por alguns minutos. Hoje as imagens do arquivo da emissora fazem parte do acervo da Cinemateca.

A transformação da fundação na Divisão Cinemateca Brasileira da Fundação Nacional Pró-Memória em 1984 marca o primeiro vínculo oficial da instituição com o poder público. No final dos anos 1980, a SAC alugou a primeira sala de exibição da organização na Fradique Coutinho, oeste de São Paulo. O primeiro filme a entrar em cartaz no novo espaço foi A Paixão de Joana D’Arc, de Carl Dreyer (1928).

A Paixão de Joana D’Arc foi o primeiro filme a entrar em cartaz na sala de exibição da Cinemateca na Rua Fradique Coutinho

A Paixão de Joana D’Arc foi o primeiro filme a entrar em cartaz na sala de exibição da Cinemateca na Rua Fradique Coutinho

Em sua sede oficial, cedida pela prefeitura em 1992 e localizada no Largo Senador Raul Cardoso, na zona sul, a Cinemateca conta com galpões construídos no fim do século XIX e duas edificações recentes. No espaço, que até 1927 abrigava o Matadouro Municipal, funcionam as salas de cinema BNDES e Petrobras, além dos arquivos de filmes. Em 1993 foi promulgada a lei que torna obrigatório o depósito na Cinemateca Brasileira de cópia das obras audiovisuais que resultarem da utilização de incentivos ou que recebam prêmios em dinheiro concedidos pelo governo federal.

O último incêndio na Cinemateca começou na madrugada de hoje, segundo o Ministério da Cultura, e atingiu o local onde eram armazenados filmes antigos, em suporte de nitrato de celulose, que fica afastado das demais estruturas. Algumas das coleções mais importantes do acervo, como as do Cine Jornal Brasileiro, Carriço e Bandeirantes da Tela eram compostas desse material. Nenhum outro prédio da Cinemateca foi atingido e quase todas as obras perdidas eram originais que possuem cópia, parte digitalizada e outra parte em acetato. Não foram confirmadas as perdas de títulos.