O que é? Segundo o Mapa da Desigualdade, uma pesquisa sobre as disparidades sociais nos distritos da cidade de São Paulo realizada pela Rede Nossa São Paulo em 2015, 37 bairros não têm acervos de livros infanto-juvenis e 36 não têm acervos de livros adultos. Parelheiros, extremo sul da capital paulista, não está entre eles, pois desde 2009 conta com a biblioteca Caminhos da Cultura, a primeira do distrito. Que diferença isso pode fazer no bairro que tem renda média entre as mais baixas do município e possuía, em 2011, a maior concentração de mães adolescentes de São Paulo? Jovens da própria comunidade, incentivados pelo trabalho do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), estão trabalhando para melhorar a qualidade de vida do bairro e têm muito a dizer sobre o poder transformador da literatura.

Uma biblioteca no cemitério

Pessoas se reúnem para celebrar a vida e debater a morte com poesia, mesas de discussão e até batalhas de rimas escritas e apresentadas por crianças.  Também há um cortejo literário com escritureiros dançando e cantando na chuva. É assim que a comunidade de Parelheiros realizou o Sarau do Terror no último sábado (dia 7). Um evento que se tornou possível com a criação da primeira biblioteca pública no bairro e que definiu uma temática inspirada no local onde ela está: na casa do coveiro do cemitério.

Parece realmente estranho, mas é isso mesmo: em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, a falta de locais disponíveis para servir de ponto de encontro da comunidade levou um grupo de jovens a montar a Biblioteca Caminhos da Leitura em um cemitério. A escolha do espaço surgiu por falta de opções, mas ele se tornou um ponto de conexão de famílias, formando uma rede motivada pelo desejo de melhorar a qualidade de vida no bairro onde vivem. Em junho de 2014, o lugar foi reconhecido pela Secretaria Municipal de Cultura e pelo Ministério da Cultura como Ponto de Cultura, mas isso foi o resultado de um trabalho que já dura sete anos.

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Essa história começou em 2008, quando o Ibeac já havia realizado experiências de atuar em setores específicos ligados à saúde ou à educação, por exemplo, em bairros como Cidade Tiradentes Jardim Ângela, Jardim São Luis, Capão. Foi então que as coordenadoras de Direitos Humanos, Isabel Mayer e Vera Lion, começaram a se perguntar porque não usar o território como base para trabalhar diferentes políticas públicas e observar o impacto nos indicadores sociais locais? Parelheiros foi o bairro escolhido para abrigar as ações dessa iniciativa porque apresentava os piores indicadores de condições de vida entre as 31 subprefeituras da cidade.

Biblioteca Caminhos da Leitura (Divulgação)

Biblioteca Caminhos da Leitura (Divulgação)

A primeira atividade desenvolvida foi a revisão da Declaração dos Direitos Humanos na ocasião do seu 60º aniversário, realizada por 60 jovens, sendo que 20 deles foram trazidos por uma professora incentivada pelo Ibeac a convidar os estudantes que tinham um histórico de participação nas atividades extra-curriculares da escola estadual Renata Menezes dos Santos. Sidineia Chagas, que participava do programa Escola da Família, então uma adolescente, resolveu participar do projeto porque planejava estudar para se tornar advogada e tinha interesse no tema.

Enquanto esses jovens participavam das oficinas do programa, as coordenadoras buscaram identificar quais as principais demandas dos jovens em relação ao bairro onde viviam. Foi então que surgiu a ideia de instalar uma biblioteca literária no bairro. O projeto, chamado de Pílulas de Leitura, foi inscrito no edital do Instituto C&A para incentivo à leitura com o objetivo de instalar uma biblioteca na Unidade Básica de Saúde de Colônia (bairro dentro do distrito de Parelheiros onde está a Caminhos da Leitura). Além de construir um acervo para a população, a intenção era que os livros fossem receitados para os pacientes pelos médicos junto com os medicamentos e que os jovens estudantes fizessem leituras na sala de espera e em suas escolas. O projeto foi aprovado, mas era preciso incentivar o hábito da leitura para que a biblioteca cumprisse sua função transformadora dentro do bairro. Quinze adolescentes foram convidados para participar da compra dos livros e receberam a formação para se tornarem mediadores de leitura e administradores da biblioteca.

A literatura foi um ponto de partida para articular um conjunto de ações. A gente continua fazendo o que a gente chegou para fazer que era construir uma história de mobilização social que articulasse a política e as pessoas para transformar essa realidade. Era isso que a gente queria. Qual ia ser o caminho, como isso ia acontecer, a gente tava aberto para fazer isso com essa comunidade.  

Isabel Santos Mayer

Depois de passarem quase um ano se preparando, eles tiveram que procurar um novo endereço para a biblioteca pois um dentista precisava da sala onde a biblioteca tinha sido instalada para atender seus pacientes. A casa do coveiro do Cemitério de Colônia, fundado em 1829, foi único espaço encontrado na região para abrigar a biblioteca. Depois de uma reforma realizada com a ajuda de amigos e familiares dos jovens participantes do Pílulas, os Escritureiros, a nova sede da biblioteca foi aberta ao público em julho de 2010.

A biblioteca comunitária Caminhos da Leitura possui hoje um contrato de comodato com o cemitério que garante o direito de uso do terreno por 10 anos. Entre os quinze jovens que participam regularmente das atividades, cinco são responsáveis diretos pela administração da biblioteca, que tem um acervo de 3500 exemplares e abre de segunda à sexta das 8h às 17h. Isabel conta que o objetivo é fazer do local um ponto de convergência onde a comunidade se encontra e que, ao mesmo tempo, irradie as transformações sociais pelo bairro.

Eu já gostava de ler, eu tenho esse livro desde a escola – O Menino do Pijama Listrado, do John Boyne – que marcou muito a minha vida. E eu já venho com essa bagagem de ter vontade de ler. Aqui eu não tinha contato com nada e eu moro aqui no Barragem há 11 anos. Foi então que eu me envolvi num projeto que envolvia a literatura e me engajei mais.

 Sidineia Chagas

Uma rede conectada pela leitura

O papel de mediadores literários que é desempenhado pelos jovens Escritureiros em Parelheiros, é envolver os moradores criando e cultivando o hábito da leitura. A tarefa, inicialmente realizada entre uma consulta e outra com os pacientes da UBS, também ganhou espaço dentro das escolas Lucas Roschel Rasquinho, Belkice Manhães Reis, Creche Santa Terezinha e nas duas instituições municipais de ensino, as EMEIs Vargem Grande I e II.

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A escola Renata Menezes dos Santos, que foi incendiada há um ano e hoje funciona dentro da Joaquim Alvares Cruz, foi a primeira a abrir a porta para os adolescentes do projeto e liberar os alunos para as atividades organizadas por eles. Sidineia conta que o local funcionava como um laboratório onde as novas iniciativas do grupo eram testadas, e que eles planejam uma mobilização para o dia 13, quando completa um ano desde que a escola foi desativada.

Dentro das escolas acontecem os cine-debates, uma sessão mensal com um filme sobre um livro ou que aborde a literatura; o clube de leitura, no qual os participantes recebem um exemplar de um livro escolhidos por eles cedido para empréstimo pela Companhia das Letras; e as oficinas de poesia. Para atrair os estudantes mais velhos, foi criado o Cortejos de Leitura, para abordar as histórias de forma lúdica e levá-las para as ruas entoando cantos compostos pelo próprio grupo. O Cortejos foi inscrito no programa para a Valorização de Iniciativas Culturais, o VAI, em 2011.

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Apresentação do Cortejos Literários no Sarau do Terror do último sábado

No mesmo ano surgiu a ideia de organizar o primeiro sarau no bairro, o Mulheres na Literatura e, em seguida, o Negros na Literatura. O Sarau do Terror veio em 2011. Outra iniciativa dos Escritureiros que também recebeu apoio do VAI foi o projeto Griot, criado para promover um resgate étnico e cultural da região por meio de conversas e registro de histórias contadas pelos moradores, entre outras ações. Para valorizar o que cada bairro tem a oferecer, também foi criado o Manancial de Cultura, que recebe apoios culturais por meio da Lei Rouanet para retratar as riquezas da região por meio de poesia e arte espalhadas em murais e postes.

Processos de transformação

Isabel conta que aprendeu muito durante os sete anos de atuação do Ibeac em parceria com os jovens de Parelheiros. A instituição já havia incluído a instalação de bibliotecas em suas ações em outros bairros desde a inauguração do Centro de Documentação em Direitos Humanos e Biblioteca Comunitária Solano Trindade, em Cidade Tiradentes, mas nunca havia implantado uma biblioteca literária. Ela conta que uma das suas referências para a realização dos projetos na região foi Antônio Cândido, que aborda a literatura como um direito, e fala sobre a importância da universalização do acesso aos livros. Desde que começou a trabalhar com a literatura como ponto de partida para a mudança social, ela procura inserir o tema em outras iniciativas do Ibeac, levando o incentivo à leitura literária para outros lugares.

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A alta incidência de jovens mães na região levou o Ibeac a criar em 2013 o projeto Sementeiras de Direitos, para criar vínculos afetivos entre as mulheres e também entre elas e as crianças por meio de relatos orais e registros que trabalham a memória, chamados de Cadernos de Percurso.  Maria Aparecida Jurado, uma das educadoras que coordenam a atividade, conta que a necessidade de falar foi uma demanda das participantes identificada durante as reuniões realizadas na UBS Nova América.

A gente as convida para conhecer mais o nosso trabalho e entender que a princípio a gente quer criar um coletivo de vínculo, e a partir desse vínculo que a gente vai desenvolver o que é necessário e o processo vai definindo o nosso trabalho junto com aquilo que a gente tem como objetivo que é atingir as mulheres na sua identidade, nas questões relacionadas ao ser mulher, A gente vai percebendo as necessidades, como a necessidade de falar no grupo, e vamos criando junto com elas a relação para que esse trabalho se desenvolva.

Maria Aparecida Jurado

A ideia surgiu porque mulheres e crianças foram identificadas como as principais vítimas da violação de direitos, e que o fortalecimento de laços entre elas por meio do compartilhamento de experiências, anseios e desejos poderia reverter essa situação. Maria Aparecida conta que os efeitos da criação e cultivo desses vínculos são perceptíveis até na aparência das mulheres, que passam a se cuidar, a ter uma outra postura, a serem mais confiantes.

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Sidineia na quinta edição do Sarau do Terror no Cemitério da Colônia que também é sede da biblioteca Caminhos da Cultura

Sidineia, uma das jovens que participaram desde o início do projeto e por isso está entre os gestores da biblioteca, engravidou aos 18 anos e se viu pressionada pela família a decidir entre continuar no projeto ou buscar um emprego que ajudasse a sustentar seu filho. Sua vontade de prosseguir atuando como mediadora literária prevaleceu e hoje ela se orgulha do que conseguiu realizar, fazendo do bairro um lugar melhor para Otávio crescer. Ela é finalista do Prêmio Laureate Brasil 2015 para empreendedores sociais e se prepara para viajar para a cerimônia de premiação, em Salvador. Otávio, que sempre para a mãe trazer livros para ele das suas viagens, já está ansioso pelo seu retorno.

Para saber mais sobre o projeto, leia o estudo realizado por Lívia Furtado sobre o impacto das ações articuladas a partir da Biblioteca Caminhos da Leitura na vida dos jovens que participaram do projeto.