Por que calçada? Leandro Beguoci tem os tornozelos frouxos, torce o pé nas calçadas de São Paulo pelo menos uma vez por mês e acha que calçadas são um dos melhores meios de transporte já inventados no planeta. Esse texto fala sobre os problemas da capital paulista, mostra como Los Angeles só mudou com processo bilionário e tem depoimentos de pessoas que conhecem boas calçadas em outras partes do planeta.
Um caso de amor
Gosto muito de bicicleta. Sempre andei de ônibus. Sou apaixonado por trens. Acho metrô um monumento à civilização. Mas sabe de uma coisa da qual eu gosto mesmo? Muito? É de calçada boa, de calçada amiga, de calçada bem feita que não é apenas uma rampa de carro ou um cimento jogado ao acaso. Tudo o que essa calçada na Vila Olímpia, em São Paulo, não é.
A Vila Olímpia foi, durante décadas, um bairro residencial. Ao longo dos últimos anos, ela se transformou num destino de escritórios na capital paulista. Dezenas de prédios foram erguidos na região. Eu trabalhei lá entre 2012 e 2013, em um desses prédios novos. O contraste entre os edifícios e a rua era chocante. Na hora do almoço, dezenas de pessoas tentavam caminhar por aquelas calçadas esburacadas, destruídas, que contrastavam com as linhas retas e bem cuidadas dos prédios recém-erguidos. Desde aquela época, fiquei obcecado com calçadas.
Afinal, “a pé” é meu meio de transporte predileto. Mas fica difícil quando todas as calçadas da rua Augusta se inspiram em trincheiras da primeira guerra ou quando as calçadas da Vila Olímpia são obras de arte involuntárias. É um problema velho, mas que ninguém consegue resolver. Porque, em tese, a regra é clara. Em São Paulo, assim diz a prefeitura:
“A manutenção das calçadas é uma responsabilidade do proprietário ou responsável pelo imóvel lindeiro a ela. Isso abrange você, munícipe, entidades privadas (comércios, condomínios entre outros) e organismos governamentais.
A Prefeitura, por exemplo, deve reformar os passeios das edificações públicas municipais, adequar as calçadas das vias estruturais (que são as grandes vias de tráfego intenso e que foram determinadas no Plano Diretor. Desde janeiro de 2008, o Executivo Municipal – depois da lei 14.675/08 – também passou a ser responsável por reformar e adequar as calçadas que estejam estipuladas pelas Rotas Estratégicas e de Segurança, que são circuitos determinados em todas as Subprefeituras da cidade que agregam o maior número de serviços, meios de transportes coletivos, circulação de pedestres, hospitais, centros de saúde, escolas e outros equipamentos sociais ou privados.
As calçadas da cidade de São Paulo precisam estar adequadas aos padrões municipais que são definidos por legislação. Calçada fora da norma, ou que depois de reformada não for devidamente cuidada, é passível de multa. Fique atento!”
A lei é clara. A responsabilidade também. O problema é que ninguém segue. Calçada não entra na agenda pública. Não há manifestações em prol de calçadas – embora a multa seja expressiva. Ainda a Prefeitura de São Paulo:
“Antes, o fiscal definia o valor de acordo com o tamanho do buraco (de R$ 102,02 a R$ 510,01). Agora a multa passa a seguir o tamanho da calçada (R$ 300 por metro). Ou seja, se uma calçada com buraco tem extensão de 20 metros a multa passa a ser de R$ 6.000 (R$ 300 mutiplicados pelos 20 metros da calçada), valor que não muda se a calçada estiver tomada por buracos ou com apenas um pequeno buraco.”
No final das contas, dá aquela sensação de que não resta muito a fazer senão lamentar – e prestar atenção para não quebrar a perna. Mas aqui, no Outra Cidade, a gente não gosta de mimimi. Então a gente foi ver se algum lugar do mundo tinha um problema parecido e como deu alguns passos para resolver. E tinha!
O caso de Los Angeles
Embaixo do glamour de Hollywood há um emaranhado de calçadas zoadas. Os jornais de Los Angeles frequentemente publicam fotos como a desta calçada-morro, das calçadas-remendadas-com-asfalto, das calçadas-que-te-levam-para-as-profundezas-da-terra. É só clicar nos links e notar as semelhanças com as calçadas de várias cidades brasileiras.
O problema parecia insolúvel. Los Angeles, tal como São Paulo, é uma cidade na qual as pessoas andam de carro. É o sistema de transporte por definição. Em cidades assim, calçadas são invisíveis. Não tem como se importar com algo que você não usa.
Até que um grupo de pessoas se uniu e resolveu processar a cidade com base na lei americana em prol das pessoas com problemas físicos e motores. A ação se arrastou por cinco anos, até que a prefeitura resolveu fazer um acordo com o grupo. Ela se comprometeu a investir cerca de US$ 1,5 bilhão ao longo dos próximos 30 anos para resolver o problema. Pela cotação de hoje do dólar, serão gastos R$ 5,1 bilhões para acabar com desníveis, buracos e crateras. As calçadas têm de ser boas para pedestres, cadeirantes e bebês sentados em seus carrinhos.
Não foi uma batalha fácil. Segundo o CityLab, site referência para o Outra Cidade, foi uma ação cansativa. A prefeitura não dava muita bola. Diferente de várias cidades brasileiras, as calçadas de Los Angeles não são responsabilidade dos moradores. Quem faz a manutenção é a prefeitura. O nó é que as calçadas nunca foram prioridade municipal. Elas ficaram abandonadas.
Até que a administração municipal mudou. Tudo ficou mais rápido. O prefeito democrata Eric Garcetti, eleito em 2013, pegou a bandeira e assumiu como compromisso de gestão. A combinação de ativismo contínuo da comunidade e ação judicial transformou as calçadas em assunto – e finalmente em compromisso assinado.
Esse método tem se espalhado em outras cidades americanas, até porque várias têm o mesmo problema. O professor brasileiro Leonardo Macario viveu nos EUA e conta:
“Meu meio de transporte favorito também é andar a pé. Era bem difícil em West Lafayette (Indiana), um pouco por causa das estradas que cruzavam a cidade, um pouco mais por conta da cultura do automóvel. Aqui não peguei nenhum lugar em que as calçadas são usadas de forma exemplar pelas cidades”
Da Califórnia a Nova York, passando pelo Mississippi, as pessoas estão se organizando em grupos de pressão que, mais tarde, lançam ações judiciais contra as prefeituras. É por amor à cidade ou por processo contra ela. A prefeitura escolhe…
Calçadas e carros
Obviamente, nem todas as cidades nas quais as pessoas andam de carro têm calçadas ruins. A jornalista Gisela Blanco lembra o caso de Brasília, onde ela viveu:
“Em Brasília, todas (ou quase todas) as calçadas são feitas pelo governo, seguindo um padrão, mesmo nivelamento. Muito mais fácil andar com um carrinho de bebê por lá, ou cadeira de rodas. Não que sejam todas perfeitas ou o bom nivelamento se estenda pra todos os bairros da cidade. Mas é bom lembrar também que Brasília é uma cidade plana, o que facilita muito”
A questão é como colocá-las na agenda. Hoje, há três modelos de manutenção de calçadas pelo mundo:
- A responsabilidade é das pessoas
- A responsabilidade é do governo
- Em alguns lugares é do governo. Em outros, é das pessoas
O nó é transformar calçada em assunto – da prefeitura e das pessoas. Ninguém se importa com aquilo em que pisa, e isso é péssimo. Uma calçada ruim é um sinal de descaso com você e com as pessoas ao seu redor. Quase metade dos casos ortopédicos do Hospital das Clínicas, em São Paulo, começa num acidente na calçada. Quando você descuida da calçada, pode machucar outras pessoas – e até uma pessoa que você ama.
A Prefeitura de São Paulo, que vem tentando melhorar o transporte público e incentivar as pessoas a usar mais bicicletas, tem pouco do que se orgulhar nas medidas a favor dos pedestres. Reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que a cidade está muito longe das metas de calçadas. Para piorar, ainda afrouxou as multas contra calçamentos ruins. Antes, a multa era imediata. Agora, ela pode ser retirada se a pessoa arrumar em 60 dias. Com dois anos e meio de gestão do prefeito Fernando Haddad (PT), só 30% dos passeios públicos com acessibilidade, prometidos pela gestão, foram entregues.
Para colocar na agenda
Um dos grandes problemas é que não há associações barulhentas pró-pedestres nem caminhadas de pessoas que sofreram acidentes em passeios públicos. Não há mães e pais em marcha contra pedaços de asfalto que transformam uma saída com o bebê em uma sessão de lambaeróbica. As ações mais expressivas vêm de pessoas com problemas de locomoção. A deputada federal Mara Gabrilli (PSDB-SP) vem pressionando por uma lei federal para, ao menos, obrigar as prefeituras a padronizar as calçadas. A ideia é obrigar os municípios a padronizar os calçamentos, para facilitar a locomoção de quem usa cadeiras de rodas. É bom – mas ainda é insuficiente.
É preciso incomodar tanto os moradores quanto o poder público. Caso contrário, velhinhas vão continuar tropeçando em buracos e sangrando.
Tem solução?
Antes de esse texto ser publicado, perguntei a uma série de amigos se eles conheciam bons exemplos de calçadas pelo mundo. E, sim, tem um monte. Abaixo, alguns depoimentos:
“Eu sugiro as calçadas de Genebra, na Suíça. São amplas, dá para andar com carrinho de bebê, limpas. As de Paris têm muita sujeira (lembro de uma campanha que a Prefeitura de Paris teve que fazer para que as pessoas recolhessem o cocô de seus cães, de tão sujas que eram). Também concordo com as calçadas de Nova York, são muito boas mesmo, até quando tem neve na altura da minha cintura (meço 1,57 m)” Ivy Faria
“Conheci Nova York quando estava grávida (de gêmeos) e reparava nos carrinhos de bebê duplos para todo lado. E nem eram gêmeos, mas era tão prático andar de carrinho que as pessoas usavam muito para crianças de várias idades. Assim como também se via muito crianças em patinete. Duas coisas que por aqui são muito complicadas de usar” Cinthia Rodrigues
“Em São José (SC), eu vi que algumas calçadas em regiões periféricas têm padronização tátil para deficientes visuais. Achei interessante aquilo. Não está 100%, mas já é algo. Detalhe: antes do calçamento com padrão, não havia quase nada de calçadas. E a implantação da padronização tátil foi da prefeitura” Vagner Alexandre Abreu
“Milão é tudo de bom. O controle dos cidadãos é muito rigoroso. Todos controlam todos” Chris Mazzotta
“Em Londres funciona mais por causa das leis que não permitem mudanças na calçada sem autorização. Nos subúrbios a calçada não é tão boa como no centro, mas ainda assim, mesmo que tenha que dar uma volta de outra forma desnecessária, há rampas pra cadeirantes e dá pra andar muito bem pela cidade toda durante a maioria do ano. Os parques também têm áreas definidas pra bicicleta e pra pedestre, o que ajuda. Quando neva, porém, só as vias mais movimentadas são tratadas, o que resulta em escorregadas” Ana Emília Jenkins
Ninguém quer se envolver numa batalha maluca com a prefeitura que vai consumir tempo de funcionários públicos e dinheiro municipal – dois itens escassos. Mas já passou da hora de transformarmos calçadas em assunto sério. Elas são um dos nossos primeiros contatos com a cidade. Quando elas são ruins, todo o resto fica ruim.
Se você tiver ideias, fale com a gente na área de comentários ou nas nossas redes sociais (Facebook e Twitter, por exemplo). O primeiro passo para melhorar um lugar é se importar com ele.