O que é: Leonardo Rossatto fala da história recente da tecnologia e das cidades e de como a maneira de pensar as cidades mudou nos últimos anos – assim como as prioridades dos moradores. O Leonardo é autor do texto “Cidades Inteligentes: de onde vieram e para onde vão?”

A cidade do teletransporte morreu

Até a década de 80, quando as pessoas eram confrontadas com a questão “como será a vida na cidade em 2015?”, as respostas incluíam carros voadores e veículos movidos por fusão nuclear. Isso quando as previsões não eram ainda mais otimistas, incluindo o teletransporte e as viagens no tempo.

É até engraçado lembrar desse tipo de previsão hoje em dia, tamanha a discrepância entre elas e o mundo real. Ainda que já existam protótipos de carro voador e veículos movidos a hidrogênio, o cenário imaginado no século passado segue sendo uma utopia. E isso tem a ver com a natureza da inovação tecnológica no período.

Entre os anos 60 e 80, houve um grande esperança em relação aos impactos da tecnologia na sociedade. Um deslumbramento comparável com o ocorrido nos primeiros anos do século 20, quando as inúmeras inovações em curso fizeram com que um otimismo sem precedentes fosse desencadeado na sociedade. A instalação de redes elétricas em cidades como Nova York, por exemplo, teve um efeito difícil de imaginar hoje em dia.

Grafite em muro de Nova York, em janeiro de 2015: eles ajudam a dar cor a cidades cinzas (e geladas, no caso) - foto de Leandro Beguoci

Grafite em muro de Nova York, em janeiro de 2015: eles ajudam a dar cor a cidades cinzas (e geladas, no caso) – foto de Leandro Beguoci

No início do século 20, duas Guerras Mundiais e a quebra da Bolsa de Valores de Nova York foram os responsáveis pelo fim desse otimismo. No final daquele século, a decepção foi mais difusa. Ela foi caracterizada por alguns momentos. As duas crises do petróleo, ainda na década de 70, forçaram os Estados a rever a noção de “Estado do bem-estar social” das décadas anteriores, em nome da saúde das contas públicas. Não havia mais tanto dinheiro para gastar. Nessa década, por exemplo, há vários livros que apontam para a decadência irrecuperável de cidades como Nova York e Londres. Elas tinham várias áreas abandonadas e viviam uma crise que parecia inesgotável – um cenário muito diferente de hoje, aliás.

Além disso, a exposição aos riscos da tecnologia, em eventos traumáticos transmitidos ao vivo para todo o mundo, como a explosão do ônibus espacial Challenger, em 28 de janeiro de 1986, deixaram milhares de pessoas com o pé atrás. A tecnologia não parecia apenas uma fonte inesgotável de progressos – mas também de riscos.

Mesmo o prenúncio de dias melhores e mais pacíficos com o fim da Guerra Fria, anunciado pela queda do Muro de Berlim e consolidado com o fim da União Soviética, acabou ofuscado em pouco tempo pelas atrocidades da guerra de separação dos Estados que formavam a antiga Iugoslávia e pelos casos de fome e de genocídio na África, no início da década de 90.

Toda essa retrospectiva histórica foi para mostrar, com exemplos práticos, que as prioridades da sociedade mudaram muito nas últimas décadas, e que a sociedade atual é fruto dessas mudanças. E isso ajuda a explicar por que as cidades atuais são do jeito que são.

Concorrência entre governos

Essa mudança de prioridades diz respeito justamente ao tipo de inovação que a sociedade passou a valorizar. É bom lembrar que, entre o início da Segunda Guerra Mundial e o final da Guerra Fria, o mundo viveu dividido: primeiro, entre Aliados e o Eixo. Depois, entre países capitalistas e comunistas. Essa dicotomia fez, especialmente durante o período da Guerra Fria, com que os governos investissem continuamente em desenvolvimento tecnológico e em inovação, para provar que são melhores que o “regime rival”, ao mesmo tempo em que tentavam dar a melhor vida possível aos seus cidadãos – com graus diferentes de sucesso.

Nesse contexto, ocorreram as pesquisas de base que originaram tecnologias como a genética e a informática (que palavra velha, aliás). Também surgiu a Internet e toda uma geração de remédios que ajudou a aumentar expressivamente a expectativa de vida no planeta. Além disso, o óbvio: em pouco mais de uma década de investimentos, o homem alcançou a Lua.

Prédio-jardim da Fundação Ford, em Nova York (foto: Leandro Beguoci)

Prédio-jardim da Fundação Ford, em Nova York (foto: Leandro Beguoci)

Em relação às cidades, o deslumbramento e a ilusão de modernidade também davam o tom. Basta observar o maior ícone de arquitetura modernista construído nessa época, Brasília. Uma cidade projetada de cima para baixo, para parecer bonita para quem vê de cima, repleta de construções impactantes e com formato de um avião. Uma cidade que retrata, no Brasil, o espírito megalomaníaco da época. E que esquecia completamente do mais importante: da experiência que as pessoas teriam ao viver diariamente lá.

No final do século 20, tudo mudou. Já não havia mais um rival para ser vencido. A tecnologia não tinha resolvido todos os problemas da sociedade, e também não parecia tão segura assim. E isso, junto com a popularização da Internet, fez com que florescesse um novo tipo de pensamento nas pessoas: o de que a segurança e o conforto estavam acima da necessidade de correr riscos em nome de um objetivo maior.

Conforto e segurança

Esse tipo de pensamento ajuda a explicar porque as viagens de carro e de avião são feitas, hoje em dia, com a mesma velocidade com que eram feitas há 50 anos atrás. É nítido que os veículos e a tecnologia mudaram. Mas a mudança foi, basicamente, em relação à segurança e ao conforto. Coisas que eram totalmente básicas há 50 anos, como a necessidade de aumento na velocidade das viagens e o desenvolvimento de novas matrizes energéticas, ficaram em segundo plano. O mais incrível é que novas fontes de energia têm sido desenvolvidas atualmente não por causa da necessidade de aumento no poder de propulsão dos veículos, como se imaginava antes, mas por causa da necessidade de popularização de energias limpas.

Essa necessidade de conforto e segurança chegou à gestão das cidades, com um lado bom e um lado ruim: o lado bom é que as pessoas pararam de observar as cidades como projetos distantes e megalomaníacos. Criou-se uma demanda pelo aproveitamento da vida na cidade. Por outro lado, a demanda por segurança aumentou a segregação espacial baseada no poder econômico. Esse cabo de guerra é especialmente dramático em locais como as metrópoles latino-americanas, em que centros modernos, repletos de edifícios inteligentes e opções de entretenimento, são cercados de bairros miseráveis . Ninguém nega que a violência aumentou nessa década. O problema é a resposta que demos à violência.

A questão do conforto e da segurança nas cidades não deveria ser dramática. Mas ficou. E então ficamos pensando: o que fazer? É hora de continuar olhando para a história.

Ponte da avenida Sumaré: os saltos esportivos transformaram o viaduto em área de lazer (foto: Leandro Beguoci)

Ponte da avenida Sumaré: os saltos esportivos transformaram o viaduto em área de lazer (foto: Leandro Beguoci)

A cidade como experiência do usuário 

As cidades nasceram e cresceram porque pessoas com interesses em comum se reuniam nos mesmos lugares, em torno de algum recurso natural ou comercial, para desenvolver uma vida comum mais fácil do que seria a vida solitária. Para proteção e desenvolvimento mútuo, “intensificando suas experiências e pulsos neurais”, como disse Georg Simmel ainda no início do século 20.

No entanto, o desenvolvimento técnico modificou um pouco a relação das pessoas com a cidade. A cidade passou a ser pensada não para o benefício coletivo, mas como pequenos arcabouços de resistência individual, como pessoas vivendo juntas, mas separadas. Quem fala isso é o arquiteto Jan Gehl, em seu livro “Cidades para Pessoas”:

“Pela primeira vez na história da humanidade cidades não são construídas como conglomerações de espaços urbanos, mas como edificações individuais”

A edificação apenas individual é a deturpação do conceito original de cidade. As cidades devem ser feitas para pessoas viverem bem, e viverem juntas. Cidades sempre foram intermediadoras e amplificadoras da experiência humana, sendo focos de criatividade e de inovação. É justamente isso que o próprio Jan Gehl diz em entrevista recente:

(…) Quando os urbanistas planejam e organizam edifícios na cidade como se fossem vistos pela janela do avião, em vez de edifícios vistos da rua. Em vez de planejar a cidade de baixo, planejam de cima. Primeiro os edifícios, depois os espaços livres e depois, finalmente, preocupam-se um pouco com as pessoas. Nos tempos antigos, sempre se pensou nessa ordem: pessoas, espaços e edifícios. Até que se inverteu a ordem: edifícios, espaços e pessoas.

A inovação na inovação urbana não é uma inovação em si: é uma retomada do sentido original de cidade. É a ideia de gerir a cidade de acordo com a experiência do usuário, voltada para quem ela deve existir, de fato – o cidadão. E o cidadão não de forma individual, mas de forma coletiva. Inovar, conceitualmente falando, tem a ver com a ideia de proporcionar a melhor experiência de usuário possível ao maior número de pessoas possível na cidade. A todas elas, preferencialmente.

Essa ideia de cidade inclusiva não é pacífica e nem de fácil implantação. A resistência a esse modelo é baseada justamente no conceito contrário: o da cidade exclusiva. Esse conceito, já explicado aqui, ajuda a aumentar a segregação espacial e a criar espaços que não são feitos para que a grande maioria das pessoas desfrute uma experiência positiva, mas para que poucas pessoas desfrutem de uma experiência mais positiva ainda, em detrimento do restante. Isso não acontece porque as pessoas são más. Acontece porque as cidades mudaram tanto que se tornaram ambientes ameaçadores. E quem tem mais dinheiro acaba tendo uma atitude defensiva na cidade. Em vez de viver a cidade, as pessoas se protegem dela.

É por isso que esse texto teve exatamente zero exemplos de inovação urbana. Porque a discussão sobre inovação urbana passa, antes de qualquer exemplo, em revisitar a história das cidades sob a ótica da inovação e aprender com ela. A experiência das pessoas nas cidades só vai melhorar quando a arquitetura urbana for pensada, principalmente, no benefício que aquilo trará às pessoas. E isso pede ideias inovadoras e criativas.

Por isso, precisamos fazer novas perguntas para inovar as nossas cidades.

  • Como pensamos na experiência do usuário da cidade como algo coletivo?
  • Como inovamos a gestão das cidades como indivíduos e como sociedade?
  •  Como unimos a inteligência das pessoas que formam uma cidade para que elas se transformem em inteligência coletiva?

Nós não estamos acostumados, por uma série de razões, a pensar na cidade como uma experiência coletiva. Retomar essa lógica de pensar a cidade como experiência coletiva, que moveu o crescimento urbano desde a Antiguidade, é algo vital para pensar na inovação urbana a sério no momento atual.

Afinal, o grande desafio político do século 21 é justamente esse: o de usar a ciência e a tecnologia como instrumentos para a promoção de uma sociedade mais justa e mais colaborativa. E, em um mundo cada vez mais urbanizado, as cidades são o cenário óbvio em que isso vai ocorrer.

Imagem principal: avenida Europa, em São Paulo (foto de Leandro Beguoci)