O que é? Nós gostamos de viajar pelo país e conhecer outras cidades. Um dos nossos editores, Leandro Beguoci, foi até Bauru e conta o que viu no antigo coração ferroviário do Estado de São Paulo – e por que há motivo para esperança entre tantas ruínas. Bem vindo, bem vinda ao #outracidadenaestrada.
Paixão no trilho
Cresci numa cidade ferroviária, Caieiras, na grande São Paulo. O que significa que, tal como muitos dos meus amigos de infância, fui fissurado por trens, trilhos e estações. A gente diferenciava os trens brasileiros dos trens espanhóis. Sabia quais eram as estações inglesas e quais eram as estações brasileiras. Alguns conheciam até os maquinistas e o estilo de cada um em levar a locomotiva pelos trilhos da antiga estrada de ferro Santos-Jundiaí. Quando fui à Escócia, pela primeira vez, fiquei espantado com a semelhança entre várias daquelas estações perdidas no interior e a minha estação de Caieiras.
Sempre que visito uma cidade ferroviária, ou que já foi uma, gosto de ir à estação de trem – mesmo que ela não receba mais passageiros. Aliás, pai, deixa eu te contar uma coisa: uma das coisas que eu mais gosto no sítio em Piracaia é a estação de Canedo, que hoje é uma escola. Voltando. Recentemente, fui a Bauru, no interior de São Paulo, a convite de estudantes da Unesp. Sempre tive curiosidade em conhecer Bauru. Ali, naquela cidade, já funcionou um dos maiores centros ferroviários do país.
Os estudantes me convidaram para dar uma palestra – e valeu a pena não só pelo privilégio de conversar com tanta gente boa (obrigado, Letícia Ferreira!). Como eu não sei dirigir, fui de ônibus. O caminho até Bauru, pela rodovia, segue uma estrada de ferro que já não existe mais. Em alguns momentos, olhando pela janela, dá para ver um trecho abandonado, um vale cheio de trilhos engolidos pela grama, um caminho vazio que, provavelmente, já foi animado por uma frequência constante de locomotivas. Quando cheguei, os estudantes me perguntaram se eu queria fazer alguma coisa especial na cidade.
Eu pedi para ir à antiga estação de trem Noroeste de Bauru, a NOB. A Letícia, aluna da Unesp, me disse que a estação estava desativada. Não dava para entrar lá… legalmente. Embora muitos estudantes visitassem as ruínas para as aulas de fotografia, era tecnicamente invasão de propriedade. Eu disse que queria ir mesmo assim, nem que fosse para ver a estação de longe.
O ocaso da estação se reflete no centro de Bauru. A cidade já foi uma das capitais brasileiras da logística, ligando o centro-oeste brasileiro ao litoral. Explodiu como uma cidade moderna, um centro de comércio e serviços, vibrante e cheia de vida. Vários ramais ferroviários se encontravam em Bauru e geravam uma enorme riqueza para a cidade. Essa riqueza se materializou em hotéis, restaurantes, escolas em todo o raio de influência da ferrovia. Hoje, o que sobrou é memória. A cidade se esvazia à medida em que você se aproxima da grande estação. A estação atraía. Agora, afasta.
Mas tivemos uma surpresa quando chegamos por lá. As portas estavam abertas. Uma pessoa nos olhou. Olhamos de volta. “Querem entrar?” “Pode?” “Pode! A estação agora está aberta!”. Então começamos a caminhar por aquele fantasma de concreto.
A prefeitura de Bauru assumiu o controle da velha estação e criou um projeto para ocupá-la. Há salas ocupadas por várias organizações comunitárias. A ideia é transformar a estação, uma das maiores do país, num espaço vivo, com shows, eventos e oficinas. Desde meados de agosto, ela está aberta a quem quiser visitá-la. Um grupo de pessoas está limpando os antigos túneis de acesso entre as plataformas, pintando os velhos trens abandonados e checando o estado de cada estrutura que sustenta o prédio.
Quando um deles, o Marcos, percebe que estamos meio tímidos andando pela estação, ele se aproxima. Marcos é um antigo funcionário da ferrovia, na qual trabalhou durante décadas. Voltou para fazer parte do projeto de resgate do prédio e da memória ferroviária. Ele é a pessoa ideal para isso.
Ele nos mostra um dos trens, um russo projetado para cruzar a Sibéria. Depois, nos leva para dentro de um trem americano, com todos os bancos destruídos, igualzinho a um que usei, em boas condições, no começo do ano, para ir de Nova Jersey a Nova York. Marcos também relembra os recordes de velocidade que algumas daquelas carcaças já bateram e narra os atropelamentos e tragédias que já foram protagonizados por aquelas máquinas. Nem faz tanto tempo assim, mas as ferrovias encontravam, assustavam e fascinavam índios, migrantes e imigrantes que mal conheciam a energia elétrica. E faz questão de mostrar o trem luxuoso, já reformado, usado pelo presidente, e também ditador, Getúlio Vargas. Aquela estação é um capítulo de história do Brasil com vitrais quebrados.
Enquanto Marcos fala, eu me lembro do meu herói intelectual, o historiador inglês Tony Judt. Especialista em história europeia, Judt morreu em 2010 e deixou um livro-testamento chamado “O Chalé da Memória”. Em uma das muitas passagens emocionantes, Judt conta como, menino, pegava trens em Londres e ia de um lado a outro do país, vendo as paisagens, encontrando as pessoas. Trens eram a internet antes da internet. Eles conectavam pessoas, lugares e ideias. Nenhuma cidade passava incólume à chegada dos trilhos. Elas traziam informação e gente diferente. Transformavam províncias em centros vibrantes. Porque, no final das contas, as estradas de ferro aceleravam a vida e criavam encontros.
Não é à toa que o centro de Bauru, e a cidade, como um todo, tenham sofrido tanto com o fim do transporte de passageiros, em meados dos anos 1990. A decadência ferroviária não significa apenas o encerramento de uma atividade econômica. A decadência dos trilhos colocou Bauru numa crise de identidade e de propósito e, pior, tirou algo que a cidade havia conquistado a duras penas: a sensação de importância.
Há poucas sensações piores nesta vida do que ter chegado lá e, depois, contra a sua vontade, ter de sair. A sensação de ser parte do mundo e, mais tarde, ser parte apenas de uma região geográfica… Várias cidades no leste europeu viveram isso depois da Segunda Guerra Mundial, mas ao menos elas tinham a guerra como desculpa. Bauru caiu atônita porque seu modelo de negócio se esvaiu.
O transporte por trilhos não é barato e é muito difícil arrumar uma fonte de financiamento que o justifique. Só passageiros não bastam para pagar a conta. Isso explica por que trem ou metrô só funcionem com subsídios públicos, e isso em várias partes do mundo. Há uma longa discussão nos EUA sobre os seus trens e o que fazer para que eles deem menos prejuízo e funcionem melhor. Em alguns países, quem opera a ferrovia ganha o direito de explorar os terrenos em volta – e esse dinheiro acaba sendo tão bom que justifica os prejuízos da operação. Por isso, não há um caminho simples para Bauru. Reativar os trens, como seria o sonho de muita gente (eu, inclusive), não é tão fácil quanto parece.
Por isso foi tão animador ver aquele grupo de pessoas trabalhando, limpando, organizando a estação. Uma cidade não está condenada pelo destino. A inteligência que chegou até Bauru continua lá, agora na forma de universidades e nos outros tantos serviços que se instalaram e prosperaram. Devolver a estação à cidade não significa apenas recuperar um prédio. É uma prova de coragem e organização Ao restaurar a NOB e torná-la parte vibrante do centro, Bauru dá uma prova de que pode se reinventar. Significa que a inteligência de todas as pessoas que moram por lá e amam a cidade pode devolver, ao coração geográfico do interior paulista, a sua antiga pulsação. Se der certo, Bauru dará um exemplo gigante ao país.
PS: Se você também gosta de trens, conheça o site Estações Ferroviárias. Todo o tempo que gastei neste site foi muito bem gasto.