Qual é o problema? A região do ABC paulista é uma das mais ricas e vibrantes do país. Abriga empresas importantes e uma grande população de classe média. Além disso, é praticamente uma extensão de São Paulo, e se beneficia dessa ligação natural com a maior cidade brasileira. Apesar de todas essas qualidades, é muito duro viver no ABC. A região é uma espécie de São Paulo em miniatura – mas sem a infraestrutura de transporte e mobilidade da capital paulista (que já é insuficiente para a capital, diga-se). Leonardo Rossatto vive em Santo André, uma das maiores cidades da região. Ele explica o drama e aponta alguns caminhos para destravar o polo automobilístico brasileiro.

Todo dia ele (o trânsito) faz tudo sempre igual

Todo fim de tarde é a mesma coisa. Se você quer ir de São Caetano do Sul até Santo André, ou de Diadema até São Bernardo do Campo, ou de Santo André até Mauá, ou se locomover em qualquer direção entre Santo André e São Bernardo, vai levar cerca de uma hora pra chegar ao seu destino. São Bernardo ainda tem um facilitador: muita gente utiliza a Via Anchieta como via urbana, o que facilita muito para quem tem que se deslocar entre São Bernardo e São Paulo com frequência.

Parece horrível e desgastante – e é. Quem mora no ABC paulista tem uma percepção bem forte de que o trânsito da cidade é ainda pior do que o da cidade de São Paulo. E, mesmo assim, as pessoas não deixam de usar seus carros. Por quê?

O ABC é uma espécie de Detroit brasileira e virou a capital nacional dos veículos a partir da chegada das montadoras, nos anos 1950.  Os críticos a chamam de “carrocrata”.  Eu não gosto dessa pecha porque ela é reducionista demais e não explica os problemas da região. É óbvio que há uma cultura voltada ao carro no ABC, mas essa cultura não explica por si só os investimentos insuficientes em transporte público na região. É um pouco mais grave.

Estação de trem de Santo André, que impulsionou o crescimento da cidade (foto: Rodrigolopes, da Wikipedia)

Estação de trem de Santo André, que impulsionou o crescimento da cidade (foto: Rodrigolopes, da Wikipedia)

O ABC é uma região de sete cidades que tem o consórcio intermunicipal mais desenvolvido do país. O Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, fundado em 1991 e formalizado como consórcio público em 2009, reúne as cidades da região num fórum único para buscar soluções quando os problemas são comuns. Porém, isso ainda não se refletiu na integração das políticas públicas de transporte nos últimos anos.

Tudo o que vem ao ABC em investimento na área chega por meio de parcerias com o governo do Estado. Resultado: só temos a linha 10 da CPTM, que existe há mais de um século e ainda é compartilhada com os trens de carga, e a Linha São Mateus-Jabaquara, que é um corredor de ônibus que seria ótimo para melhorar a fluidez da região, mas tem dois grandes problemas.

  • A manutenção deficiente na estrutura, que é da década de 80. Por isso os veículos elétricos andam tão devagar. Existem muitos problemas de falha de energia na rede.
  • O mais grave: o corredor é exclusivo em todos os lugares, menos nos trechos em que precisaria ser: no centro de Santo André, São Bernardo e Diadema. É incrível o tempo que se perde em torno dos Paços Municipais.

Além disso, temos um monte de promessas não cumpridas, como o Expresso ABC (descartado pelo governo de SP recentemente) e o monotrilho entre Tamanduateí e São Bernardo, mas elas não são exclusividade do ABC paulista. Praticamente todas as regiões do entorno de São Paulo têm uma obra do Metrô atrasada ou uma promessa não realizada.

Vias estranguladas 

Tem uma outra questão no jogo: a história do desenvolvimento urbano no ABC pesa, e pesa muito. Os limites do ABC se confundem com os de São Paulo. Porém, há poucas saídas de fato para a capital – por mais que isso pareça contraditório. Não dá para ver onde começa uma cidade e termina outra, mas há poucas vias que fazem essa ligação.  A relação entre a região e São Paulo é estrangulada.

Além disso, praticamente não existem vias expressas na região. Tirando as rodovias, as únicas  são as pistas centrais da avenida Lions, em São Bernardo, e da avenida Perimetral, em Santo André, além da extensão da Jacu-Pêssego, que vai até Mauá.

Por que isso acontece? Porque o desenvolvimento do ABC foi pensado em ilhas. Entre os anos 50 e 70, quando as grandes empresas chegaram e a população da região explodiu (Santo André cresceu de 127 mil pra 418 mil habitantes entre os censos de 1950 e 1970!), a lógica era simples. As empresas funcionavam nas regiões centrais, para facilitar a logística, ou em distritos afastados específicos. Os outros bairros eram residenciais. Ninguém se importava muito com o fluxo de trânsito, porque o carro não era algo quase universalizado como hoje. Então a maioria das ruas tinha duas ou três faixas no máximo. Era uma espécie de SimCity da vida real – cada lugar tinha uma função específica.

Dá pra ilustrar isso com as imagens a seguir, do Geo Portal, mostrando como era o centro expandido de Santo André em 1958 e em 2008:

Vista aérea de Santo André em 1958 (fonte: Geo Portal)

Vista aérea de Santo André em 1958 (fonte: Geo Portal)

Vista aérea de Santo André em 2008 (Fonte: Geo Portal)

Vista aérea de Santo André em 2008 (Fonte: Geo Portal)

Se vocês repararem, a estrutura viária é quase igual. As regiões centrais do Grande ABC tem uma estrutura de mais de 50 anos atrás, sem grandes alterações. O fluxo de veículos cresceu dramaticamente nesse período, e a estrutura apropriada em 1958 passou a ser totalmente insuficiente em 2008 (em 2015, então, a situação é pior ainda).

Aí também tem uma relação pouco explicada de causa e consequência que explica por que o transporte público no ABC é tão ruim. A maioria das grandes empresas que veio para o ABC, vendo que a sistema de transporte da região era ruim (muito porque os investimentos públicos não acompanharam o rápido crescimento populacional), começaram a usar transporte fretado para seus funcionários. E isso mitigou o problema da precariedade do transporte público. Quem trabalhava em grandes empresas tinha transporte garantido. Às outras pessoas restava o desespero.

O improviso cobrou seu seu preço. Até o final da década de 70, a preocupação do poder público era criar bairros e loteamentos para recepcionar o intenso fluxo migratório na região. Planejar a cidade e a locomoção dentro dela não estava na agenda.  Só que uma hora o crescimento acelerado virou uma realidade amarga.

A conta chega

Na década de 80, a crise atingiu de maneira dramática as montadoras de automóveis e a indústria química.  O dinheiro, que fluía farto para o ABC, começou a minguar. E, na medida que a euforia passava, os problemas afloravam. Aqueles bairros novos precisavam de uma estrutura mínima de funcionamento: escolas, postos de saúde, transporte público, saneamento básico e iluminação. Com a falta crônica de dinheiro, tudo isso acabou sendo construído de forma precária.

Além disso, surgiu um outro limitador para a crescimento do ABC paulista nos anos 70: o geográfico. Ele se materializou na Lei Estadual 898/1975 – a Lei de Proteção aos Mananciais. A restrição ao loteamento e à construção em áreas de preservação (que é algo ótimo, diga-se) alterou substancialmente o eixo do crescimento populacional. Se até 1975 Santo André era a cidade que mais crescia, depois dessa data São Bernardo, Mauá e Diadema passaram a receber mais migrantes. A ponto de São Bernardo ser mais populosa que Santo André atualmente e Mauá ter mais de 400 mil habitantes.  A população cresceu e se espalhou – mas, agora, estava sob a direção de vários municípios diferentes, com políticas diversas e orçamentos distintos.

A partir dos anos 90, a fluidez do trânsito se deteriorou e as estruturas viárias feitas entre as décadas de 1950 e 1970 se mostraram insuficientes. As pessoas passaram a se locomover mais entre as cidades – e de carro.

Isso aconteceu porque muitas indústrias saíram da região. A economia das cidades deixou de ser predominantemente industrial e se voltou aos serviços. Mais gente, em mais horários, fazendo mais coisas em lugares diferentes. Sem transporte, como manter uma economia de serviços, com muitas entregas e deslocamentos? Com muitos carros. Para se ter ideia, entre 2000 e 2010 o ABC ganhou 194 mil moradores – e 663 mil carros.

Os sistemas de transporte coletivo estavam sempre muitos anos atrás das mudanças da região. Quando o ABC era industrial, o jeito foi criar transporte fretado. Quando o ABC virou serviço, só restou o carro para levar as pessoas de um lugar para o outro.  Os projetos de bilhete único são muito recentes, as linhas não foram remodeladas (e a maioria delas teve seus projetos originais nos anos 80) e os investimentos em faixas exclusivas ainda são tímidos.

Os resultados 

É por isso que, mesmo com o trânsito do ABC parecendo pior que o de São Paulo no horário de pico, nem se discute a sério a adoção de medidas restritivas, como rodízio. O motivo é simples: não há contrapartidas ou opções viáveis para o cidadão.

As que existem são de qualidade ruim e não há articulação suficiente pra fazer um plano regional de transporte público, com uma rede integrada de terminais e de ônibus expressos (em faixas exclusivas) ou circulares nos bairros. Além do Corredor ABD, só se vê isso em algumas linhas municipais, na interligação entre o centro de Santo André e a Vila Luzita, via avenida Capitão Mário Toledo de Camargo. Também há ônibus circulares que saem do terminal Vila Luzita e atendem a bairros da região.

Mapa do corredor ABD - São Mateus - Jabaquara (Fonte: EMTU)

Mapa do corredor ABD – São Mateus – Jabaquara (Fonte: EMTU)

Recentemente, os municípios do ABC começaram a instalar faixas exclusivas para ônibus nos horários de pico. Em Santo André, elas têm melhorado a fluidez do transporte público no centro da cidade, enquanto em São Bernardo elas têm ajudado na ligação entre o bairro de Rudge Ramos e o Centro.

É muito provável que o Waze tenha mais informações sobre o trânsito do ABC paulista que os políticos da região. Mas é bom ver que algumas pequenas atitudes, como as faixas de ônibus, estão saindo do papel.

O trem, o rio e os viadutos

Diversos povos, etnias e religiões tentam reconstruir o presente a partir do passado  – especialmente quando precisam se reinventar. O ABC paulista está passando por isso, nesse momento. Santo André e São Bernardo do Campo insistem em dizer que foram fundadas em 1553. Existe uma espécie de devoção histórica na região, que remete à cidade fundada por João Ramalho ao casar com Bartira, filha do cacique Tibiriçá. O casal é considerado fundador do povo paulistano – mas seria, originalmente, do ABC. A região não abre mão disso. Por exemplo: o apelido do Santo André, o time de futebol, é “Ramalhão”, em referência a João Ramalho. Por mais que a cidade do casal tenha sido desmontada em 1560 e a própria família de João Ramalho tenha se mudado para a cidade de São Paulo de Piratininga, a região segue evocando o mito originário de João Ramalho.

A história da região, no entanto, é bem diferente e passa por dois fatos distintos, mas relacionados. O primeiro é o de que, em 1717, monges beneditinos construíram uma capela no caminho entre São Paulo e Santos, como uma espécie de entreposto para viajantes. Um povoado começou a surgir em torno dessa capela, onde hoje é o bairro de Rudge Ramos, em São Bernardo. O povoado nunca foi oficializado, pois cresceu nas terras particulares dos monges beneditinos, a Fazenda São Bernardo. Foi oficializado como município só em 1889, abrangendo toda a área do ABC paulista.

Moradores de Santo André ao lado da estátua de João Ramalho (foto: divulgação da prefeitura de Santo André)

Moradores de Santo André ao lado da estátua de João Ramalho (foto: divulgação da prefeitura de Santo André)

O segundo fato foi a instalação da estrada de ferro Santos-Jundiaí, em 1867, e a parada de trem que originou o “bairro da Estação”. Devido ao fluxo de bens e serviços proporcionado pelas locomotivas nas décadas seguintes, o “bairro da Estação”, que era parte do município de São Bernardo, acabou se tornando muito maior do que a sede.

Em 1910, após intensa campanha patrocinada pela família Fláquer (dona de boa parte dos lotes do município na época), o “bairro da Estação” começou a ser chamado de Santo André, em referência à vila originária de João Ramalho. Em 1938, virou sede do município que englobava todo a região. Em 1944, São Bernardo conseguiu autonomia. Em 1949, São Caetano do Sul também conseguiu. Ribeirão Pires se tornou município em 1953. Mauá, em 1954. Diadema, em 1959. E Rio Grande da Serra em 1964. Pra quem quiser saber mais sobre as transformações na região central de Santo André no século 20, recomendo essa dissertação de mestrado de Suzana Cecília Kleeb.

A questão é que a linha de trem Santos-Jundiaí, que passa por 5 dos 7 municípios do ABC paulista, teve papel fundamental no crescimento da região. No século 19, pareceu inteligente construir a linha próxima à várzea do rio Tamanduateí, para proporcionar o desenvolvimento da região. E era, de fato: ao aproximar os meios de transporte do rio, que fornecia água para a produção industrial, criou-se na primeira metade do século 20 todo um eixo industrial no entorno da Santos-Jundiaí.

Esse eixo vinha da zona norte de São Paulo até o ABC Paulista, passando por Pirituba, pela Lapa, pelo Pari, pelo Brás, pela Mooca, por Ipiranga, por São Caetano e por Santo André. Vejam a proximidade da linha do trem e do Rio Tamanduateí (na avenida do Estado) entre São Caetano e Santo André:

Mapa do ABC com ênfase na linha de trem (Fonte: Google Maps)

Mapa do ABC com ênfase na linha de trem (Fonte: Google Maps)

Só que o crescimento urbano em torno das várzeas do Tamanduateí cobrou o seu preço: as enchentes que os moradores do ABC paulista têm que enfrentar todo ano afetam a circulação de trens pela antiga Santos-Jundiaí (desmembrada nas atuais Linhas 7 e 10 da CPTM). E as ligações são bem precárias: de todos os viadutos que passam por cima da linha de trem no mapa, só um também passa por cima da Avenida dos Estados. Isso quer dizer que, quando o Tamanduateí enche, o ABC fica praticamente segmentado em duas partes. E, na maior parte das vezes, o trem também para:

Rio Tamanduateí transbordando em Santo André e estação de trem alagada, em 2011 (Acervo pessoal)

Estação de trem alagada, em 2011 (foto: Leonardo Rossatto)

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Rio Tamanduateí transbordando em Santo André, em 2011 (Foto: Leonardo Rossatto)

Mas nem de longe a chuva é o único problema para o trânsito do ABC. Ela é só uma forma de explicar como o trânsito do ABC paulista, desde a sua concepção, não é muito fluido. As enchentes só agravam, de forma extrema, situações que ocorrem todos os dias. A boa notícia é que o ABC está negociando com o governo do Estado a construção de mais oito piscinões, em complemento à estrutura de drenagem já existente.

Conclusões

Qualquer solução para o transporte público do ABC passa pelo foco na regionalização do transporte público, para que os municípios possam ter maior poder de barganha para a atração de investimentos estaduais e federais. Mas iniciativas como a construção da pista central da avenida Lions devem ser replicadas em outros lugares. Foi bem expressiva a melhoria no trânsito da região depois da construção da pista central expressa na avenida.

Por outro lado, é bem óbvio que são necessárias mais ligações entre o ABC e São Paulo. O eixo avenida Goiás-D. Pedro II fica congestionado todo dia porque praticamente não existe outra opção (além da avenida dos Estados) que faça essa ligação entre São Paulo e Santo André (até tem, pela Zona Leste, mas o trânsito é igualmente inviável).

Para resolver problemas que vão muito além do trânsito viário, passando pela construção de piscinões, pela melhoria do transporte público municipal e intermunicipal e pela construção de novas linhas de trens e de metrô, é necessário mais e melhor integração regional. E isso também passa pela solução de problemas simples, que são historicamente negligenciados pela maior parte dos políticos da região, como recapeamento e sinalização viária.

Como morador do ABC, não creio que parar de andar de carro seja a solução. Mas nós precisamos ter a liberdade de escolher se queremos andar de carro ou não e facilidade para nos deslocar sem tanto stress dentro da região e para São Paulo. Isso depende de algumas coisas complexas, mas também de coisas simples, que nem demandam tanto investimento assim.

Porém, elas demandam bastante conversa e inteligência para ver o que não está funcionando direito e repensar o sistema de forma coletiva. Afinal, há pouco mais de 70 anos o ABC todo era uma cidade só. Pensar como um único município talvez ajude a nossa região a dar os passos que ela precisa para continuar forte e relevante – sob os auspícios de João Ramalho e Bartira.