O que é? Juntar um grupo e sair andando pelo centro à noite. Uma ideia simples que desde 2005, tenta mudar o jeito que as pessoas olham para um lugar que é conhecido por ser abandonado e perigoso. Camila Montagner participou da caminhada noturna e conta como a dedicação de voluntários tem trazido gente para explorar as ruas mais antigas da cidade fora do horário comercial.

A concentração

O Anhangabaú começa a esvaziar: o comércio de rua está fechado, alguns funcionários estão terminando a limpeza. Um casal com roupa de academia tira fotos do teatro, aos poucos vai juntando mais gente na escadaria do Municipal. A maioria usa tênis, camisetas de algodão e está na faixa dos 40 aos 60 anos. Essas pessoas se reúnem em torno de um homem de cartola de papel, bigode torto preso com alça de silicone, calção, meião e chuteira. Ele cumprimenta a todos em inglês. Um passante de fraque sobe a escadaria sem olhar duas vezes para o grupo. Mesmo as pessoas em volta não estão ali só porque ficaram curiosas com o sotaque falso e a fantasia. Elas vêm de todo lado e se conhecem.

 

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São 20h e é dia de caminhada, a mesma que acontece todas as quintas há dez anos. Quer dizer, o roteiro muda, as pessoas mudam. Leisy Mary vem do Jabaquara e costumava vir sempre, até que se mudou para o ABC. Voltou a caminhar com o grupo no feriado de 9 de julho, quando percorreu a avenida que leva no nome a data da Revolução Constitucionalista. Ela conta que começou a participar por recomendação da fisioterapeuta. Para fazer exercício? “Sim, mas também para conhecer gente, fazer amigos”.

Carlos Beutel, organizador da caminhada noturna pelo centro, chega com uma bandeira amarela e fala com cada um do grupo, que já conta com mais de 50 pessoas. Ele se demora numa conversa com o falso gringo. Os dois riem, empolgados. O tema da noite é futebol e Sérgio Miranda Paz, professor de engenharia elétrica da PUC, hoje responde por Charles Miller, conhecido por trazer a bola e as regras do esporte para o Brasil. Eis o nosso guia.

 

 

O microfone portátil é ligado e começam os anúncios. Depois de falar sobre o seu restaurante vegetariano, o único patrocinador, Carlos faz um balanço das condições do centro. “Aquelas lâmpadas ali estão queimadas, precisa trocar”, aponta para o poste do outro lado da rua. Ele pergunta quem está ali pela primeira vez. As pessoas levantam as mãos e dizem de onde vieram. Tem gente de Cidade Tiradentes, Cambuci, Santa Cecília, Sacomã e outros cantos da cidade. Uma mulher veio acompanhada de seu cachorro. Entre nós, um garoto de uns 9 anos vestido com a camisa do Fluminense também aguarda a saída para o passeio.

Uma espécie de bingo com times de futebol é distribuído. Em cada ponto será contada a história de um clube, sem mencionar seu nome. Devemos adivinhar qual deles é o correspondente e usar um palito de dente para marcar no papel. No verso há um poema de Olavo Bilac.

O time

Everton Calício, colunista do Metrô News e torcedor da Portuguesa, é encarregado de levar a bandeira amarela trazida por Carlos para identificar o grupo. O arquiteto Eli Hayasaka coloca “É camisa 10”, de Luiz Américo, para tocar na sua caixinha de som e seguimos em frente. A primeira parada é o prédio da Prefeitura e Laércio de Carvalho, nosso guia turístico, aponta detalhes arquitetônicos com uma lanterna e conta que o lugar pertenceu à família Matarazzo. Sérgio explica que o conde Francisco Matarazzo doou dinheiro para o então Palestra Itália, hoje Palmeiras, comprar o terreno onde fica o seu estádio. Bingo.

A parada seguinte é em frente ao edifício Saldanha Marinho. Apesar de ter esclarecido que Charles Miller era paulistano do Brás, Sérgio mantém o sotaque arranjado entre frases cheias de infinitivos. Enquanto parte do grupo se concentra ali para ouvir a história do Nacional, outra se divide em grupos mais afastados. Um guarda municipal que ocupa posto no local recebe uma cópia do jogo dos clubes. Alguém pede uma cola porque não adivinhou qual era o time da vez.

Falando rápido enquanto segura uma miniatura de bola de futebol, a versão 2015 de Charles Miller emenda uma curiosidade sobre o músico Adoniran Barbosa, compositor de “Trem das Onze”, com a história do clube Guapira, que fica no Jaçanã, o bairro citado no samba. Ele termina contando uma piada sobre o desempenho do time e se detém em um ponto não previsto no roteiro. De repente, confessa que considera a 15 de Novembro a rua mais bonita de São Paulo. Parece estar com a cabeça longe, longe….

“Sérgio está sempre por aqui. As pessoas que vêm na caminhada e continuam com a gente são pessoas solidárias, especiais”, comenta Carlos, enquanto andamos pela rua Misericórdia. Ele, que conta com mais de dez companheiros fiéis, também não descansa: chama ali um conhecido, pergunta sobre alguém que está fazendo falta, aborda outro mais adiante.

O resultado

Quando perguntei se os temas se repetem, a resposta foi que cada lugar pode servir de cenário para várias abordagens. “São olhares possíveis. Na Sé, podemos falar das Diretas Já, mas também tem um roteiro sobre as árvores”, explica. Agora,  paramos na Praça Clóvis Beviláqua para falar sobre o Comercial, que tinha sua sede ali.

A ideia inicial, que era de oferecer às pessoas a chance de conhecer melhor o centro, parece funcionar. Uma adolescente tatuada tira fotos e chama a atenção da amiga para os vitrais no segundo andar de um prédio da rua Direita. Alguns ficam para trás tentando enxergar a forma do capacete constitucionalista no topo do “Ouro para o Bem de São Paulo”. A construção reproduz as linhas da bandeira do estado em sua fachada e evoca o lema da campanha, feita em 1932, para arrecadar dinheiro para o Estado. Como São Paulo foi à guerra contra o governo de Getúlio Vargas, precisava de todo o dinheiro disponível, incluindo ouro, para a empreitada. Os paulistas perderam a guerra, mas ganharam um prédio.

“Nossa cidade é melhor que Roma, mais bonita que Londres”, Carlos se empolga no microfone. Nosso guia faz questão de discordar, exaltando a terra de seus ancestrais supostamente ingleses. Você pode imaginar que as duas jovens, incluindo a tatuada, estão revirando olhos – mas ninguém faz isso. Os guias são bacanas com as pessoas. A dedicação envolvida, e a quantidade de informação também, faz o resto ficar em segundo plano.

No Mosteiro São Bento, o sino toca às 22h44, menos pontual que de costume. Abrimos caminho para um grupo de ciclistas da Mooca que segue tocando suas buzinas, em agradecimento. De volta ao Triângulo Histórico, os moradores de rua se ajeitam com as suas barracas e papelões. Um carroceiro explica para outro que “essa gente vem toda semana”. O grupo começa a se dispersar sem pressa. Uma hora eles se encontram de novo.

Caminhada noturna pelo centro:

  • Saída em frente ao Teatro Municipal
  • Início: 20h
  • Data: toda quinta-feira
  • Não é preciso se inscrever para participar. O evento é gratuito.
  • Programação: caminhadanoturna.com.br