Por quê? Leonardo Rossatto mostra por que precisamos repensar os prédios para ter uma cidade mais tranquila e acolhedora.

A vista 

Eu trabalho no nono andar de um prédio. A vista da janela é ótima, apesar do excesso de prédios e das gruas que dão um tom amarelo à paisagem. Ao fundo, entre dois edifícios, vejo a camada cinza de poluição próxima à linha do horizonte, criando um contraste com o azul onipresente no restante do céu do inverno paulistano. Tenho uma perspectiva privilegiada da metrópole, uma vista panorâmica da cidade. De tanto ver, confesso, já me parece até… normal.

Já trabalhei em diversos prédios e por muito tempo os considerei como parte indissociável do espaço urbano, como sinônimo de progresso, como uma mostra de que a cidade está evoluindo. Afinal, os prédios são inteligentes, são concentradores da vida urbana, respondem às necessidades de adensamento das grandes cidades e intensificam nossa experiência de vida na cidade. Esses são argumentos bastante usados para defender os prédios nas cidades.

Porém, todas essas afirmações podem e dever ser questionadas. Cada uma delas rende um texto. Nesse, eu gostaria de me concentrar em uma delas, em especial: a de que os prédios intensificam nossa experiência de vida na cidade. Porque essa perspectiva, apesar de muito difundida, engana um pouco.

O papel dos prédios

Os edifícios têm muitas funções na cidade e foram essenciais no adensamento urbano experimentado em todo o mundo desde o século 19. Eles impulsionaram o desenvolvimento das cidades desde 1880, quando a produção industrial em larga escala de aço possibilitou a construção dos primeiros arranha-céus em Chicago e em Nova York. Além disso, o visual dos prédios impressionou gerações de uma maneira quase mística.  Eles nos permitiram sonhar mais alto, mais longe. Parte do fascínio das grandes metrópoles vem do tamanho dos seus prédios.

Edifício Altino Arantes, o antigo prédio do Banespa, visto a partir do Minhocão, em São Paulo (foto: Leandro Beguoci)

Edifício Altino Arantes, o antigo prédio do Banespa, visto a partir do Minhocão, em São Paulo (foto: Leandro Beguoci)

Nessa época, pesquisadores passaram a se questionar sobre os efeitos dessas mudanças na mente humana. Afinal, o adensamento populacional traz consigo uma série de benefícios, problemas e novas relações. Elas mudam o sentido, em alguma medida, da própria vida humana.

Um dos mais proeminentes foi o sociólogo alemão Georg Simmel, em seu clássico livro “The Philosophy of Money”, lançado em 1900. A ideia contida no sexto e último capítulo desse livro, The Style of Life, originou uma conferência do autor na Exposição das Cidades, ocorrida em Dresden em 1903. Nesse ensaio, “As Grandes Cidades e a Vida do Espírito”, Simmel argumenta que a vida nas grandes cidades torna as pessoas mais individualistas e as relações humanas, mais impessoais. Mas… por quê?

A vida urbana

O individualismo exposto por Simmel tem duas vertentes. Em uma delas, o individualismo significa liberdade, pela independência individual. Em outra se dá pela desigualdade, por aquilo que torna uma pessoa única, diferente de todas as demais. E por que isso acontece? Por que ficamos tão preocupados em ser livres e diferentes em uma cidade?

Porque, para Simmel, as cidades têm uma característica aglutinante e padronizante. Elas fazem com que as pessoas tenham que enfatizar essa individualidade para não serem sugadas pela enorme quantidade de impulsos urbanos. São muitas pessoas, em muitos lugares, fazendo muita coisa – mas em um espaço limitado. É aquela sensação de que a cidade vai abrir e te engolir.

Tudo isso foi escrito há mais de um século, mas se aplica, pelo menos no nível mais geral, aos problemas atuais da cidade.

As portarias

Vamos voltar aos edifícios . Um prédio tem necessariamente um condomínio e, na maioria das vezes, um controle de entrada. Não nos damos conta disso, é claro, mas essa estrutura reforça a sensação de que estamos ilhados na cidade.

O edifício, por seu tamanho e por suas restrições de acesso, acaba distanciando as pessoas das cidades. Especialmente quando se eleva acima de um certo nível, impossibilitando qualquer comunicação entre quem está nos prédios e quem está na rua.

Não sabemos o nome dos moradores do prédio da frente e, muitas vezes, nem dos nossos vizinhos de porta. Somos únicos no nosso próprio mundo, protegidos por uma entrada e por um condomínio que toma boa parte das decisões por nós.

Reflexo de prédio na avenida Paulista (foto: Leandro Beguoci)

Reflexo de prédio na avenida Paulista (foto: Leandro Beguoci)

É por isso que, nos últimos anos, se fortaleceu, em alguns centros urbanos, a ideia de promover uma “cidade ao nível dos olhos”. É uma resposta à questão da cidade feita apenas para trabalhar e comprar, para competir por eventos e investimentos com outras cidades. Afinal, não faz sentido viver de uma ilha para outra, de um prédio para outro. É intrigante pensar que, em cidades tão cheias de gente, cada solteiro e cada solteira precise de um aplicativo para encontrar alguém. São tantas barreiras invisíveis que a gente mal se dá conta do nosso isolamento.

Um dos líderes desse movimento é Jan Gehl, que já foi assunto nesse texto do Outra Cidade. Para ele, cidades são, antes de tudo, o cenário onde a vida acontece. Elas devem ser pensadas para que essa vida seja vivida em toda a sua plenitude, com a máxima qualidade possível. Para que isso aconteça, o Gehl enumerou alguns pontos no livro “Cidades Para Pessoas”.

1) A cidade deve ser boa para caminhar. Os espaços devem ser abertos e as caminhadas devem ser desimpedidas, sem grandes obstáculos para a circulação e com o mínimo de interrupções possíveis. Além disso, devem fornecer acessibilidade e tentar eliminar todos os desníveis.

2) A cidade deve ser boa para permanecer. Uma boa cidade deve ser reconhecida pela quantidade de pessoas que estão paradas nela, e não pela quantidade de pessoas que estão andando nela. Isso quer dizer que a cidade oferece espaços para que as pessoas possam parar e conversar, ou até mesmo ficar em silêncio. A cidade não é só um equipamento que utilizamos para a vida cotidiana.

3)  A cidade deve ser boa para encontrar pessoas.  Uma cidade deve ser feita para que o contato visual entre as pessoas seja fácil, com linhas de visão desobstruídas e espaços não-compartimentados, de preferência com contato visual entre o interior e o exterior das edificações. São cidades que favorecem a criação de vínculos entre as pessoas e as ajudam a compartilhar experiências positivas.

4) A cidade deve favorecer a expressão das pessoas, os jogos e os exercícios físicos. Os espaços para a manutenção da boa forma física devem estar integrados aos ambientes urbanos. E isso inclui não apenas parques, segmentados, mas espaços internos à estrutura das cidades, como praças, por exemplo.

Vila Madalena vista da Pompéia, em São Paulo (foto: Leandro Beguoci)

Vila Madalena vista da Pompéia, em São Paulo (foto: Leandro Beguoci)

5) A cidade deve ter escala apropriada para favorecer a convivência das pessoas. Uma cidade que é capaz de pensar em escala local não é indiferente aos seus cidadãos. Em vez de pensar apenas no macro, nos Planos Diretores, as cidades devem pensar na experiência concreta de cada lugar. Por exemplo: a arquitetura de um lugar em que as pessoas andam a 5 km/h deve ser diferente da arquitetura de uma via expressa em que as pessoas passam de carro, a 70 km/h.

6) A cidade deve ter um clima bom ao nível dos olhos. Isso quer dizer que é preciso evitar a poluição veicular, mas também que a experiência de andar pela cidade não deve ser nauseante, sufocante, como se a cidade quisesse engolir a todos. As cidades devem ser projetadas para que o sol bata na maioria dos lugares e para que as pessoas possam sentir a brisa enquanto caminham, por exemplo.

7) A beleza das cidades deve proporcionar aos cidadãos boas experiências e paisagens que saltem aos olhos. As cidades devem maximizar as suas características positivas para proporcionar uma impressão agradável aos seus cidadãos.

8) As cidades devem ser boas para as pessoas pedalarem. Espaços para as bicicletas devem ser priorizados por diversos motivos: ajudam as pessoas a manter a forma física, diminuem a emissão de poluentes e proporcionam uma experiência cotidiana mais próxima entre as pessoas e a cidade, em comparação com o carro.

Todos esses requisitos tem um objetivos só: o de fazer com que as cidades proporcionem experiências bacanas para as pessoas, melhorando suas vidas em vez de estressá-las. Porque historicamente esse sempre foi o objetivo das cidades: melhorar a vida das pessoas.

E isso tem a ver com a questão dos prédios, pelo menos tal como eles existem hoje. O prédio não intensifica a experiência das pessoas dentro da cidade. Pelo contrário: na maioria das vezes, segmenta e restringe. Do nono andar, eu não consigo enxergar nada do que acontece no solo. Algumas vezes, uma charanga toca em frente à escola que fica na rua do prédio onde trabalho.

Eventualmente, eu vou até a janela olhar. A maioria das pessoas, ao contrário de mim, se incomoda com o barulho.  E por que isso acontece? Porque a cidade, hoje, limita as nossa sensações. Quando a cidade já não olha as pessoas no olho, ninguém percebe mais as boas experiências que a cidade pode proporcionar. A charanga, por exemplo.

Uma cidade legal é uma cidade que te proporciona um mundo de experiências e sensações – e não apenas a sensação de que vai te engolir a qualquer instante. E aí a gente abre um mundo de perguntas interessantes.

Para começar:

Vale a pena continuar construindo prédios?

Por quê?

E, se sim, que prédios?

Se eles ainda são necessários, como eles podem contribuir para construirmos cidades para pessoas?