A Cidade de Luxemburgo é um dos principais centros bancários do mundo. Com 115 mil habitantes e o segundo maior PIB per capita do planeta, a capital luxemburguesa teve um aumento do trânsito nos últimos anos. Há poucas vagas públicas de estacionamento e muitos trabalhadores moram em cidades vizinhas na França e na Bélgica, tornando o tráfego mais lento em algumas estradas. De qualquer modo, é uma cidade pequena e muitos deslocamentos internos podem ser feitos rapidamente a pé ou de ônibus.
De acordo com o ranking mundial de cidades de pior trânsito, a capital de Luxemburgo está empatada com… São Paulo. Sim, é a São Paulo que você deve ter imaginado, capital do estado do mesmo nome, cidade mais populosa do Brasil, o lugar em que reclamar do tráfego virou uma modalidade esportiva. Pelo Índice TomTom, as viagens paulistanas e as luxemburguesas demoram, em média, 29% a mais que o normal devido a congestionamentos.
O empate técnico entre essas duas cidades tão diferentes já serve de alerta, mas há vários outros pontos que permitem colocar em dúvida os critérios adotados para o ranking, algumas vezes tratados pela imprensa – sobretudo a brasileira, até porque nossas capitais constantemente aparecem entre as dez piores (atualmente, Rio, Salvador e Recife estão nesse grupo) – como algo científico e reconhecido mundialmente. Não é assim. A metodologia desse levantamento é bastante específica, e não considera vários elementos de uma análise sobre o quão ruim é o trânsito de uma metrópole.
Nove cidades brasileiras apareceram na edição 2016 do ranking: Rio de Janeiro (4º lugar), Salvador (7º), Recife (8º), Fortaleza (41º), São Paulo (58º), Belo Horizonte (78º), Porto Alegre (109º), Brasília (123º) e Curitiba (126º)
Como o nome já indica, o Índice TomTom é elaborado pela TomTom, fabricante de sistemas de navegação para carros. A empresa coleta o dado de todas as viagens computadas em seus aparelhos em automóveis de 295 cidades pelo globo. Cada vez que o usuário carrega uma rota nova, o sistema indica o tempo estimado até se chegar ao destino. Se o deslocamento estava previsto para demorar 50 minutos e, no final, demorou 55, fica computado que o trânsito prolongou em 10% o tempo do trajeto.
Para fechar o ranking, a TomTom tira a média desse tempo adicional de todas as viagens de uma determinada cidade, como se isso refletisse a realidade de todo o tráfego do local. No entanto, esse método desconsidera várias coisas:
Cidades de tamanhos diferentes têm realidades diferentes
Em metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro ou Tóquio, os deslocamentos médios têm distância e tempo enormes. Em um lugar menor, como a Cidade de Luxemburgo, um motorista certamente se desloca menos. Em viagens curtas, coisas triviais do trânsito podem causar pequenos atrasos, mas que se tornam proporcionalmente relevantes dentro do tempo total da jornada. Não significa que houve tráfego, mas pode ser um entroncamento ou o excesso de semáforos. Além disso, não dá para comparar o atraso proporcional sem considerar que o desconforto – e a sensação de trânsito ruim – se dá com atraso absoluto. Como assim? Uma viagem que estava estimada em 10 minutos e durou 15 teve aumento de 50%, mas é muito menos incômoda que uma de 50 minutos que durou 1h10 (aumento de 40%).
Trânsito não é só carro
O índice mede apenas o atraso dos motoristas de carro que usam GPS. Por mais lento que seja o tráfego de automóveis em uma cidade, seu trânsito não será realmente ruim se outros modais, como metrô, ônibus, bicicleta e até a caminhada, forem realmente eficientes e proporcionarem viagens rápidas e confortáveis. O enfoque da mobilidade não é mais o tempo de deslocamento do carro, mas oferecer opções para que cada pessoa use o meio de transporte mais adequado para suas necessidades. Por exemplo, no Índice TomTom de 2016, São Paulo está 26 posições abaixo de Paris, mas – apesar de esforços recentes – muitos paulistanos ainda usam o carro porque as demais opções são muito piores, enquanto que, na capital francesa, é possível viver praticamente só de metrô e quem faz tanta questão do carro que fique preso nas ruas.
A precisão do sistema da empresa pode mudar de uma cidade para outra
O ponto de partida do ranking é o cálculo que o sistema da TomTom faz para o tempo da viagem se o trajeto estiver livre. Claro que a empresa holandesa confia em sua base de dados e acha válido usá-los como parâmetro para medir a demora das viagens causada por trânsito, mas é difícil que as 295 cidades atendidas tenham medições igualmente precisas. Até porque o tempo de viagem não é algo apenas matemático considerando trajeto, velocidade limite e semáforos. O comportamento do motorista também deve ser considerado (do impulso a costurar em uma avenida na busca de caminho livre ao costume de parar ou não para um pedestre atravessar a rua).
Nem todo mundo usa GPS, e nem todo mundo que usa GPS usa o da TomTom
O ranking de trânsito é feito com base nas viagens de usuários de GPS da TomTom. Convenhamos, é uma parcela pequena dos motoristas de qualquer cidade. Muitos utilizam outros sistemas de navegação (Waze, NavCity, Garmin, Aquarius, Google Maps), alguns preferem mapas físicos (como um guia de ruas) e há uma grande quantidade de pessoas que simplesmente não usa auxílio algum porque conhece bem a cidade ou faz sempre os mesmos trajetos. Ou seja, o Índice TomTom acaba tendo forte influência da realidade pontual do nicho de mercado que seu sistema atende em cada cidade do mundo. Se, em uma cidade, muitos usuários dos GPSs da TomTom são pessoas de renda média-alta que vivem em bairros de acesso fácil, o “atraso médio” tende a ser menor do que em uma na qual o sistema se populariza entre taxistas que circulam prioritariamente nas áreas mais movimentadas – e congestionadas – do centro.
Apesar de tudo isso, os dados apresentados pelo Índice TomTom não devem ser descartados. Ele apenas não deve ser visto como uma verdade absoluta na comparação que sugere entre o trânsito de cidades de todos os lugares do planeta. Ainda assim, uma metrópole que esteja nas primeiras posições do ranking certamente tem sérios problemas de congestionamentos a resolver, independentemente de ser primeira, segunda ou oitava do mundo.
Mas a principal utilidade do índice é na comparação de uma cidade com ela própria. Se um lugar ganha ou perde muitas posições de um ano para o outro, é uma indicação de que algo de bom ou de ruim pode (atenção ao “pode”, pois é uma possibilidade que merece investigação técnica para ser confirmada) estar acontecendo. Ainda que, no fundo, o índice indique “atrasos de motoristas de carros que usam TomTom em cima do tempo de viagem estimado pelo banco de dados do TomTom”, os elementos que condicionam os dados do ranking, como o tamanho dos deslocamentos médios ou o nicho de mercado ocupado pelos usuários de GPS, tendem a mudar pouco. Ou seja, a variação pode vir realmente do tempo das viagens.
Em março, quando foi divulgada a última atualização do Índice TomTom, São Paulo caiu – no caso, cair é bom – para a 58ª posição. Em 2014 estava em quinto lugar. A prefeitura aproveitou a oportunidade para postar a notícia no Facebook e em seu site, considerando uma vitória de diversas medidas adotadas nos últimos anos. De fato, a capital paulista tem adotado políticas consideradas modernas para lidar com mobilidade, como aumento de ciclovias, redução dos limites de velocidade aumento de corredores e faixas exclusivas de ônibus.
Na comparação de São Paulo de 2016 com São Paulo de 2014, o avanço no ranking é relevante. Mas não dá para ir muito além disso e achar que está melhor que todas as 57 cidades que ficaram para trás na lista. Primeiro, porque a redução do limite de velocidade nas avenidas faz que o tempo estimado para uma viagem sem trânsito, usado como base para o Índice TomTom, fique maior, o que reduz o “atraso” relativo dos trajetos. Além disso, qualquer paulistano sabe que ainda há muito a se fazer na cidade, e que sua mobilidade é muito mais problemática que a da Cidade de Luxemburgo, independentemente dos 29% que ambas compartilham.