O quê? As pontes de São Paulo são muito usadas por carros e pouquíssimo por pessoas. As calçadas são estreitas, quando existem. A área de pedestres é mal iluminada. Os rios fedem. Poucas pessoas passam pelas pontes por prazer – quase todas, por necessidade. É um cenário diferente de outras cidades. Em Nova York, Londres, até em cidades do interior da Argentina, algumas pontes são passeios turísticos obrigatórios. Tudo isso não impediu o engenheiro e jornalista André Tassinari de pegar seu filho, colocá-lo no carrinho de bebê e atravessar uma dessas pontes paulistanas. No texto abaixo, André relata como foi a preparação para cruzar a ponte, explica a relação entre seu filho e a Amélie Poulain e levanta uma série de dados que precisam mudar (é mais fácil morrer atropelado do que ser assassinado durante um assalto em São Paulo). O texto mostra que a mudança da cidade passa, e muito, pelos lugares abandonados.
Os selfies (não tão selfies) do meu filho
Quem já teve que fazer um bebê dormir sabe que um dos métodos infalíveis é dar uma volta de carrinho. Mas pra ser infalível a volta nem sempre é curta. Primeiro porque o bebê pode demorar pra dormir. Segundo porque, pra garantir que ele não acorde logo, o ideal é não parar de andar (ou então eu que acostumei mal o meu filho). Noves fora, uma saída para um cochilo matinal pode durar de uma a duas horas. Estimando uma média de velocidade de 3 km/h, pode-se percorrer mais de 5 km por passeio.
Quando meu filho tinha 2 meses e acordava todo dia às 5h45, eu pensei: em vez de dar 18 voltas na pracinha, por que não aproveito para explorar a cidade e passar por lugares que nunca passei, ou ver pontos famosos de São Paulo por um outro ângulo? Na época eu morava em Santa Cecília, uma ótima base para essas aventuras (ou loucuras na opinião de alguns parentes próximos).
Por que aventuras? Bem, as calçadas de São Paulo não são exatamente um tapete, como já documentado aqui no Outra Cidade. É só o seu bebê pegar no sono que aparece uma mega cratera no meio da calçada. O que fazer? Atravessar a rua? Se já é perigoso ser pedestre na cidade, como mostra esse outro post, imagine ser um pedestre acoplado a um veículo que insiste em enganchar as rodas em cada imperfeição do terreno?
Mas os riscos valem a pena. Entre trancos e buracos, como se fosse o gnomo de Amélie Poulain, o carrinho de bebê do meu filho tirou selfie com o MASP, o Theatro Municipal, a Paulista, o Minhocão – e para o desespero da avó, até no cemitério da Consolação!
Ou seja, apesar dos obstáculos dá para fazer muita coisa com uma ideia na cabeça e um carrinho de bebê na mão. Mas é claro que poderia ser muito melhor. Os motoristas de carrinho de bebê precisam se mobilizar assim como os ciclistas e cadeirantes já fazem e os pedestres estão começando a fazer.
Afinal, se de acordo com o IBGE existem 700 mil crianças até 4 anos em São Paulo, deve haver pelo menos uns 200 mil carrinhos tropeçando por aí.
Isso é quatro vezes mais que o número de cadeirantes potencialmente beneficiados pela liberação do uso das ciclovias pelo prefeito Haddad. Claro que assim como a questão da mobilidade urbana não deve ser pensada em carro x bicicleta, também não deve ser cadeira de rodas versus carrinho de bebê. Até porque se é bom para um, é bom para outro. Mas ao contrário das cadeiras de rodas – e dos patins, skates, triciclos e patinetes – os carrinhos não são autorizados a usar as ciclovias (o número de ciclistas frequentes em SP não é muito diferente do número de carrinhos, algo entre 200 e 300 mil). Tem gente que até se arrisca, mas mesmo que fosse autorizado não seria prudente. Lugar de carrinho é na calçada.
Às vésperas do primeiro aniversário do meu filho, nossa família se mudou para Nova York. Meu primeiro passeio de carrinho com ele foi na manhã do aniversário. Parecia que as calçadas nova-iorquinas lhe estavam desejando happy birthday. Largas, lisas, planas. Mais um sonho de consumo brasileiro realizado em solo americano.
O trajeto até o Central Park era tão tranquilo que dava para empurrar o carrinho com uma mão e segurar o café com a outra. E no período em que estávamos lá ficou ainda mais seguro, com a redução da velocidade máxima dos carros para 25 mph (40 km/h). Essa medida faz parte do programa Vision Zero do prefeito Bill de Blasio, que tem como meta zerar o número de mortes no trânsito na cidade. Apesar de recente, o esforço já surtiu efeito: em 2014 houve o menor número de mortes de pedestres em um ano desde que há registro – 132. Em 2013, houve 182, o maior número da década. Em São Paulo, 555 pedestres foram mortos em 2014, contra 514 em 2013.
Para ter uma ideia do que isso representa: 150 pessoas morreram em assaltos em São Paulo em 2014. Ou seja, a chance é bem maior de morrer atropelado do que ao ser roubado.
Mas nem tudo é perfeito para os “strollers” em Nova York. Andar de metrô é complicado. Só 20% das estações têm elevador. Então se o motorista de carrinho estiver sozinho vai depender de uma pessoa gente fina pra ajudar a carregar o peso escada abaixo (ou pior, acima). Em São Paulo, todas as estações do metrô são acessíveis a pessoas com deficiência, e consequentemente a carrinhos. Claro, em Nova York existem sete vezes mais estações do que em São Paulo. Mas é muito bom saber que, se tiver metrô, tem elevador.
Melhor ainda seria saber que se tem calçada, tem passagem para um carrinho. Pelo menos dos pequenos, que medem cerca de 50 cm. Nossa volta a São Paulo esse ano foi um choque de realidade calçadiana. Não dá pra chegar na pracinha a duas quadras de casa sem ter que desviar perigosamente com o carrinho por uma rua movimentada devido a árvores e postes que ocupam quase toda a pequena largura da calçada.
A largura mínima das calçadas deveria ser de 1,20 m de acordo com a prefeitura, mas se isso é respeitado são outros quinhentos. Essa é a mesma largura exigida no projeto de lei de autoria da deputada federal e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência Mara Gabrilli. Esse projeto prevê que os municípios terão que prever no seu plano diretor o uso de calçadas por deficientes e idosos. Além do tamanho adequado, as calçadas seriam uniformes, teriam piso antiderrapante e rampa até o nível da rua (os carrinhos até conseguem subir sem a rampa, mas tem muitos lugares em que nem os menores carrinhos conseguem passar).
E se as ciclovias têm sido criadas em ritmo rápido pelo prefeito Haddad, as metas de implantação de calçadas acessíveis não atingiram 30% do prometido.
Mas não é só um problema de metas, mas de responsabilidades. Talvez o ideal seria adotar o modelo de Los Angeles em que a responsabilidade pela manutenção das calçadas é da prefeitura, e não dos proprietários de imóveis. Até porque nem sempre o problema é de manutenção, mas de implantação e uniformização. Mesmo que um proprietário mantenha bem sua calçada, se a prefeitura colocou um poste lá no meio deixando meio metro livre, isso não é culpa do morador. E se a transição entre uma calçada e outra não é bem feita, isso prejudica bebês, cadeirantes e pedestres. O gerenciamento das calçadas pela prefeitura facilitaria a padronização das calçadas e harmonização das transições, nem que os proprietários pagassem uma taxa referente a isso no IPTU.
O fato de São Paulo ser uma cidade com relevo bastante acidentado não ajuda. Comparar a experiência de pilotar um carrinho aqui com cidades como Nova York ou Brasília é covardia. Mas pior do que as subidas e descidas é a proliferação de superfícies intransponíveis como depressões transversais e degraus consecutivos. E dá-lhe levantar o carrinho no muque. O que mais dói num passeio longo não são as pernas, mas os pulsos que sofrem o impacto das manobras off-road exigidas. Afinal, são quase 20 kg entre carrinho e tripulante.
Mesmo com todos estes desafios (ou seria por causa deles?), num domingo recente decidi fazer mais uma expedição exploratória com meu filho e seu veículo não-poluente. Objetivo: cruzar o rio Pinheiros por uma de suas pontes, coisa que eu nunca tinha feito nem a pé. Origem: Vila Beatriz, bucólico bairro de calçadas de três palmos vizinho à Vila Madalena. Destino: festa de criança nas imediações do Jockey Clube.
Era um ensolarado dia de inverno paulistano. Tínhamos três opções de ponte para atravessar o rio: Cidade Jardim, Eusébio Matoso ou Cidade Universitária. Imaginei que a última, pelo fato de muita gente que vai pra USP descer na estação da CPTM que fica do lado oposto do rio, seria mais amigável para pedestres. Eu estava certo, havia muita gente cruzando essa ponte a pé ou de bike.
Na verdade o grande problema do trajeto não foi a ponte, mas chegar até ela. Trafegando pelas ruelas e avenidas de Alto de Pinheiros, acho que se não fosse domingo o passeio não teria sido possível. Cerca de um terço do tempo nós estávamos no meio da rua, graças a algum problema com a calçada. Por ser domingo, havia poucos carros nas ruas menos movimentadas.
Cruzar a ponte a pé (mais quatro rodas) foi uma sensação marcante. Ver aquele rio, figura tão presente em minha vida, por um ângulo tão diferente me fez sentir tristeza por ele ainda ser tão feio, mas também muita esperança de que ele ainda tenha jeito. A ciclovia que já existe em sua margem é um sinal disso. Meu filho infelizmente não pôde desfrutar desse momento, já que estava dormindo – assim como na maior parte das nossas aventuras pela cidade. Mas quando ele crescer vai poder ver no Instagram do pai os lugares tão especiais da cidade onde ele já esteve.