O que é? O sistema de transporte em São Paulo e no Rio de Janeiro ainda tem muito a melhorar, mas ele não é o caminho mais curto entre dois pontos do inferno (embora às vezes se esforce para imitar um caldeirão de água fervente). A partir do caso de uma amiga, Leandro Beguoci discute estigma e a necessidade de um plano de marketing para o nosso sistema de transporte público.
Vergonha do ponto
Uma grande amiga tem uma filha adolescente muito esperta, inteligente e… fã de cidades. Melhor: essas três características se encontram, caminham juntas e se materializam numa série de iniciativas de dar gosto – e esperança. Mãe e filha descobrem juntas o centro de São Paulo, têm uma agenda interessante do que está acontecendo em vários pontos da capital paulista e inventam programas que mostram a enorme criatividade dessa cidade. O review em vídeo da filha da minha amiga, sobre o borboletário de São Paulo, é uma graça.
Mas, dias atrás, minha amiga ganhou uma improvável ruga de preocupação. A menina chegou em casa e disse que não queria mais pegar ônibus. Depois, começou a perguntar por que a mãe não tinha um carro maior. Minha amiga ficou encucada. A família inteira pega ônibus, e isso geralmente é divertido. Também não é uma família obcecada por carros (é o contrário, na verdade. Eles não ligam). Minha amiga foi investigar mais a fundo e descobriu que o problema não estava na filha, mas no entorno.
A menina é pré-adolescente e estuda num colégio tradicional de São Paulo, de classe média alta. Muitas famílias vão levar e buscar os filhos de carro ou têm automóveis gigantescos espalhados na garagem. Conversa vai, conversa vem, a menina conta que tinha vergonha de ser vista no ponto de ônibus pelas outras pessoas da escola. O estigma do transporte público chegou a uma casa em que ele sempre foi legal, divertido e natural. Ok, tem um mundo de adolescência nessa preocupação.
Porém, é na adolescência que a nossa antena para captar os problemas do mundo está mais aguçada. Os hormônios captam com radicalidade aquilo que a vida adulta ameniza, entende, deixa pra lá, não fala. Porque, sim, muitos de nós ainda temos vergonha de usar ônibus e metrô.
Orgulho das gentes
Em várias partes do mundo, o transporte público é um dos símbolos da cidade. Basta ver a quantidade de camisas com o mapa do metrô de Londres ou a quantidade de turistas aglomerados para pegar os ônibus de dois andares da capital britânica.
O metrô de Nova York também rende cartazes, que servem de decoração na casa de várias pessoas pelo planeta. Mesmo quando o metrô sistema de transporte não é exatamente pop, como o de Paris, ele ainda rende boas fotos – basta ver a quantidade de gente que faz selfies nas estações ou na entrada delas na França. Até Washington, a insossa capital dos EUA, tem estações fotogênicas – uma delas virou um dos símbolos da série House of Cards.
E aí voltamos para a filha da minha amiga. Em várias cidades do Brasil, na maior parte delas, o transporte público carrega, além de pessoas, um enorme estigma. Esses dois documentários, de alguns anos atrás, feitos no Rio, concentram todos os conceitos e preconceitos contra ônibus e trem que o país tem (além de falar de mais um monte de coisas tristes, terríveis, que não cabem nesse texto agora). São 28 minutos que resumem o que vários de nós pensamos quando ouvimos falar de “trem lotado” e “ônibus cheio”. E são 28 minutos em que você fica pensando por que as pessoas mais pobres da cidade tinham de se submeter a esse sofrimento – e por que ele demorou tanto tempo para ser amenizado.
O transporte público, naquela época, desafiava o horror. As pessoas mais pobres viviam uma aventura precária e involuntária, uma forma tragicômica de lidar com a debilidade do sistema. E isso não era apenas no Rio, claro. O Rap do Trem, do grupo RZO, conta uma história parecida em São Paulo – com menos humor e mais cinza.
São imagens de um país no qual o ônibus, o trem, não eram transporte. Eles eram punição. O descaso chegou ao nível da irresponsabilidade. Muitas pessoas morreram caindo de vagões e de janelas. Ok, muitas delas decidiam correr o risco. Mas a maior parte delas simplesmente era obrigada a viver o risco para conseguir ir de um lugar para outro. Ninguém acorda de manhã e sonha em disputar uma aventura radical na porta do ônibus para chegar ao trabalho.
Hoje, apesar de todos os pesares, o sistema melhorou – e muito. Não estamos no paraíso do transporte público, é claro. Mas também já saímos, ao menos em São Paulo e em algumas regiões do Rio, daquele estado medonho do final dos anos 80 e começo dos anos 90. Falta muito? Falta. Mas o sistema, hoje, pelo menos oferece alguma dignidade. E, claro, vale lembrar: reconhecer os avanços não significa diminuir a cobrança. Significa apenas reconhecer o que nós, cidadãos, conseguimos realizar com os nossos esforços.
Com algumas medidas tomadas por vários prefeitos e governadores brasileiros nos últimos anos, como os corredores de ônibus, as tarifas integradas (como o Bilhete Único) e o redesenho das linhas, mais pessoas começaram a trocar os carros pelo transporte público. Ele passou a ser viável.
Cenas dantescas de superlotação rarearam. Os surfistas ferroviários desapareceram. A imagem de gente pendurada nas janelas rareou. E isso, somado a uma série de medidas, tem levado mais gente ao sistema público.
Nesta terça, dia 22 de setembro, no Dia Mundial Sem Carro, uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo mostrou que o número de pessoas que usam automóveis todos os dias (e quase todos os dias) caiu de 56% em 2014 para 45% em 2015. Isso significa que mais gente está usando o sistema público, a ponto de esse dado positivo vir logo acompanhado de um dado negativo.
Cerca de 59% dos usuários disseram que os ônibus estão mais lotados. É mais gente usando, mas ainda sem estrutura suficiente. Afinal, a malha de trens e metrôs ainda é claramente insuficiente para cidades gigantescas como São Paulo. Já os ônibus, melhores e mais rápidos, atraíram pessoas que não sonham em ir de carro todo dia para o trabalho. O nó é que os coletivos ainda são insuficientes diante do tamanho da cidade e da timidez da rede metroviária.
As prefeituras, e não apenas a de São Paulo, vivem um desafio real. Levar mais pessoas para o sistema público é fundamental para melhorar a mobilidade da cidade, diminuindo congestionamentos e racionalizando a locomoção. Mas, ao mesmo tempo, isso não pode vir acompanhado de superlotação. Qualidade atrai gente – e chegou a hora de pensar em como continuar atraindo sem que o sistema afunde. Afinal, ninguém vai dormir à noite pensando em como vai ficar grudadinho no ônibus, no metrô ou no trem.
Ponto de virada
Estamos vivendo um momento muito importante para o transporte no Brasil. Quando eu tinha a idade da filha da minha amiga, eu já pegava ônibus, trem e metrô. Era muito ruim. Lembro de entrar em ônibus e ter de ficar pendurado porque o motorista simplesmente partia, para evitar a superlotação. Era uma época em que os trens eram tão zoados que havia buracos no chão tapados com madeira. Usar transporte público era humilhante, e eu sei que ele ainda é para muita gente cidade afora (eu já peguei, várias vezes, o Terminal Capelinha ou o Terminal Santo Amaro na hora de pico). Só que o sistema está mudando, e algumas percepções também.
Antes, quando eu dizia que pegava ônibus e trem, algumas pessoas me olhavam com cara de “nossa, a família dele deve estar quebrada”. Pouco depois, já na faculdade, a feição era de “nossa, que hippie! Quer ficar usando transporte público para parecer alternativo!”. Agora, aos poucos, algumas pessoas já olham daquele jeito “nossa, se ele pode, talvez eu também possa”.
Pessoas que nunca pensaram em usar transporte público, aos poucos, começam a cogitar essa possibilidade – especialmente quando ele é mais rápido e econômico do que os carros e consegue ser razoavelmente confortável. Só que o estigma continua muito grande. E, enquanto o estigma continuar, o transporte tem um teto para melhorar. Afinal, quando as pessoas melhoram de vida, elas abandonam o sistema, em vez de continuar brigando e pressionando para ele evoluir e se tornar mais confortável e confiável. Pessoas que poderiam brigar por ele de outras formas, além dos métodos e das formas que alguns grupos tradicionalmente já usam para melhorá-lo, o abandonam.
Ainda há um longo caminho técnico a percorrer. Precisamos melhorar as linhas, ampliar os horários de funcionamento, tornar o sistema mais confiável. Também precisamos perder o medo de discutir algumas ideias. O pessoal do site Caos Planejado tem estudado modelos de transporte descentralizado, como em Lima, no Peru. Já existem modelos regulatórios em que a prefeitura abre mais o sistema para concorrência, em vez de usar apenas subsídios para organizar preço e fornecedores (afinal, o sistema em São Paulo e no Rio hoje é privado, com um tipo específico de regulação estatal). Também há lugares que adotaram a tarifa zero, inclusive cidades de médio porte, nos EUA. Neles, as pessoas pagam pelo transporte público de forma indireta, com impostos. São vários modelos de financiamento e funcionamento. Essa discussão é fundamental, e não existe resposta certa ou errada – existe apenas resposta mais apropriada para o tipo de cidade e o modelo de deslocamento.
Mas também precisamos enfrentar um problema de marketing no sistema público – seja ele como for. A filha da minha amiga não pode ter medo da opinião das amigas. Nós precisamos ter orgulho do que nós, cidadãos, construímos – e são os nossos impostos, o dinheiro das nossas tarifas e a nossa pressão que fizeram com que prefeitos e governadores pudessem melhorar o sistema nos últimos anos.
Agora, nós precisamos manter essa pressão viva. Nós não conseguimos melhorar algo que odiamos. Precisamos olhar para o nosso sistema não como uma doença incurável, mas como algo que gostamos tanto que vamos cuidar, melhorar e, em breve, mostrar para o mundo com orgulho. Afinal, os ônibus coloridos de São Paulo têm lá seu charme – e o metrô precisa, urgente, de um designer para deixar seu mapa mais fotogênico. Transporte bom também é transporte que vira caneca, camiseta e objeto de desejo de turistas e visitantes. Transporte bom é aquele em que ninguém se sente humilhado por usar – seja porque está lotado seja porque é carregado de estigma.