O que é? Os dados do censo do IBGE mostram que o Brasil tinha 190,8 milhões de habitantes em 2010. Desses, 45,6 milhões tinham algum tipo de deficiência – visual, auditiva, motora ou mental/intelectual. Isso dá quase 24% da população. A deficiência visual apresentou a maior ocorrência, afetando 18,6% da população brasileira. Em segundo lugar está a deficiência motora, ocorrendo em 7% da população, seguida da deficiência auditiva, em 5,1%, e da deficiência mental ou intelectual, em 1,4%.
Em 2000, eram 24,5 milhões de pessoas, que representavam 14,5% da população. Com 20 milhões de pessoas com deficiência a mais em 10 anos (ou que se identificaram dessa forma), é impossível pensar nas cidades sem pensar em políticas que facilitem a vida dessa parcela da população – e sem levar em conta cada tipo de deficiência. Leonardo Rossatto traça o retrato do problema e conta como ele pode ser amenizado. Se tudo der certo, no futuro próximo todos nós, com ou sem deficiência, teremos muito a agradecer a cadeirantes, cegos, surdos e mudos.
Deficiência, nome e acidente
Em 2003, a FGV fez uma extensa pesquisa chamada “Retratos da Deficiência no Brasil”. Existem muitas coisas lá que ainda são atuais, como a percepção de que pessoas com deficiência ganham menos que os demais trabalhadores (mesmo com a Lei das Cotas, de 1999). Que mulheres com deficiência são maioria e sofrem mais que os homens. E que existia até mesmo uma “migração de acessibilidade”: as cidades com maior porcentagem de pessoas com deficiência física eram cidades mais acessíveis, por questões topográficas ou por políticas públicas, e isso atraía mais pessoas com deficiência para lá.
Mas o comentário principal sobre a pesquisa da FGV diz respeito à terminologia utilizada. Na época, os governos e a academia chamavam as pessoas com deficiência de PPD’s (pessoas portadoras de deficiências), como a FGV fez. Por algum tempo, PNE’s (Portadores de Necessidades Especiais) também era um termo aceito. O Victor Caparica, que pesquisa o tema da audiodescrição em quadrinhos em seu doutorado na UNESP e tem deficiência visual, explica para nós por que esses termos são errados e por que o melhor termo possível é PcD (Pessoa com deficiência): “PcD é o termo internacionalmente acordado. Portador é terminologia médica e deficiência não é doença”.
A percepção da deficiência mudou bastante da virada do século pra cá. As políticas de inclusão também melhoraram bastante. Alguns Estados, como São Paulo, Piauí e Amazonas, criaram secretarias para tratar só do tema da inclusão. Algumas prefeituras, como as de São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e Barueri, seguiram pelo mesmo caminho. Até mesmo o governo federal criou uma Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Mas por que cresceu tanto o número de pessoas com deficiência no país? Não existe um único motivo, mas algumas respostas são possíveis. Uma delas é que mais gente se sentiu confortável em se definir como pessoa com deficiência, um sinal de que o estigma foi amenizado. Mas só isso não explica.
Em 2009, uma pesquisa da AACD mostrou que a maioria das lesões medulares (que provocam paraplegia ou tetraplegia) no estado de São Paulo são provocadas por acidentes de trânsito. E foi justamente na década de 2000 que o Brasil viu um crescimento exponencial de carros nas ruas. Entre 2001 e 2012, o número de carros nas ruas saltou de 24 milhões para 50 milhões. Como notou a Mariana Barros, do Cidades Sem Fronteiras: “Em apenas dez anos, surgiu nas ruas a mesma quantidade de carros criada ao longo de todas as décadas anteriores”.
Existem evidências, também, de que a exposição à poluição do ar e da água na gravidez pode fazer com que as crianças venha ao mundo com deficiências. Na China, o número de bebês com malformações disparou desde que os índices de poluição começaram a subir exponencialmente. É óbvio que esses dois fatores não encerram a questão. Mas é possível dizer que, quando você faz políticas de redução dos acidentes no trânsito e de redução de poluição nas ruas, também está fazendo um trabalho preventivo para que menos pessoas tenham deficiências no futuro.
Como fazer uma cidade mais acessível?
Bem, cada deficiência precisa de protocolos diferentes. Para cegos, a leitura em braile, a audiodescrição e os semáforos com indicação sonora são essenciais. Para surdos, intérpretes de LIBRAS, sinais luminosos e textos são formas de comunicação com o mundo. Para quem tem limitações de movimento, a existência de rampas, a calçada plana e a inexistência de degraus já ajuda. E não só quem tem deficiência motora. “Calçadas largas, planas, regulares e sem galhos de árvores baixos ajudam tanto o cego quanto o cadeirante a usar a via pública”, diz Victor Caparica.
Mas a tecnologia também pode ajudar. O Blindsquare, por exemplo, é um aplicativo de GPS para cegos, que descreve via voz os pontos ao redor, incluindo a distância e a direção para onde a pessoa deve se deslocar. O Ariadne faz um trabalho similar.
Para pessoas com deficiência motora, existem outros aplicativos específicos. Mas a Mila Correa, que usa cadeira de rodas e escreve sobre o tema no Lugar de Mulher, argumenta que esses aplicativos acabam segregando, ainda que não de forma intencional, a pessoa com deficiência: “Seria bom se grandes aplicativos como o Google Maps colocassem a acessibilidade como algo a ser pontuado sempre, nos casos onde se marca um estabelecimento, por exemplo, “pizzaria x horário de funcionamento tal acessível”, sabe? Não ser a exceção, não precisar ter um aplicativo só pra isso”. Fica a dica para o Google, aproveitando que agora eles decidiram investir em cidades inteligentes. “Inclusão é para todo mundo se beneficiar, até quem não tem deficiência”, frisa a Mila.
Em 2010, eu estava na Praia Grande quando me deparei com uma aglomeração de pessoas. Entre elas, o então governador do Estado, José Serra. Uma estrutura coberta com rampas, tapetes e um caminho até o mar estava sendo inaugurada. Era o programa “Praia Acessível”, que visava facilitar a vida de quem não consegue se locomover adequadamente (e, pensando bem, a vida das pessoas com deficiência na grande maioria das praias deve ser mesmo horrível). O tempo passou e isso ficou só como uma memória aleatória, até que, escrevendo esse texto, eu me deparei com o programa e vi que ele é uma das principais iniciativas da Secretaria de Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo.
A secretaria tem desenvolvido iniciativas interessantes de inclusão além do Praia Acessível, apesar de algumas delas ainda serem incipientes. Um ex-funcionário, que pediu para não ser identificado, comentou: “a secretaria montou um programa de instalação de tecnologias assistivas em bibliotecas públicas e lançou o edital no início do ano, mas esse processo atrasou um pouco pelo fato de que as bibliotecas tiveram que montar um projeto explicando qual equipamento elas gostariam de receber e por quê”.
Boa parte das políticas em relação às pessoas com deficiência está concentrada na inclusão por meio do esporte (muito bem sucedida, por sinal, afinal o Brasil é hoje uma das potências do esporte paraolímpico). Alguns procedimentos simples, como um convênio com a polícia civil para colocar nos boletins de ocorrência se uma pessoa tem deficiência ou não, estão ajudando a quantificar as agressões às pessoas com deficiência no Estado de São Paulo nos últimos anos.
Outra coisa bem legal que acontece todo ano é a Virada Inclusiva, sempre no começo de dezembro. O evento reúne um conjunto de atrações de cultura, lazer e esporte. Eles são feitos para que as pessoas com e sem deficiência possam viver aquilo juntas tanto na capital paulista quanto em diversas cidades do Estado. Mas o trabalho do setor público para tornar a cidade mais acessível ainda engatinha.
“O mobiliário urbano, como postes, orelhões, placas, árvores, também precisa obedecer às normas de acessibilidade e não o faz, e é algo que atrapalha bastante”, argumenta Mila.
Às vezes, o investimento acaba sendo em coisas que são boas, mas não são tão necessárias: “O trilho sensorial para cegos é legal, mas não é 100% indispensável na rua. Se tiver, melhor, mas dá pra viver sem, desde que as calçadas sejam planas, regulares, largas e sem obstáculos no meio dela”, explica Victor.
Outra coisa que provoca reclamações recorrentes em pessoas com deficiência é a qualidade dos serviços urbanos, em especial o transporte público. “O mais complicado é o transporte público, motoristas destreinados para lidar com aquele trambolho que é o elevador. Aliás, podia ser uma rampa, se o ônibus fosse de piso baixo. Também é ruim porque é somente uma cadeira por vez, e ainda tem a má vontade da população em esperar. No caso dos cegos, que precisam saber que ônibus estão pegando, podia ser resolvido com um sinal sonoro ou um aplicativo que fosse confiável com horários. Se já é difícil pegar ônibus em grande parte das cidades, com deficiência vira uma missão hercúlea”, explica Mila.
Um vilão: as pedras portuguesas
Existe uma herança colonial no Brasil que atrapalha a vida da maioria das pessoas com deficiência: as pedras portuguesas. São um problema que afeta tanto os deficientes visuais quanto os deficientes motores, não só por seu formato, mas também pela manutenção precária que é a característica da maioria dos municípios do país. A opinião de Mila a respeito é enfática: “Salvador, a cidade em que eu moro, infelizmente está entre as piores cidades que conheço em relação à acessibilidade, pela herança maldita das pedras portuguesas sem manutenção”.
A transformação dos calçadões nas grandes cidades não é um processo fácil e barato. Além disso, não dá para simplesmente arrancar as pedras portuguesas dali. Em alguns lugares, como o Rio de Janeiro, elas são uma espécie de patrimônio cultural (o calçadão de Copacabana, retratado na foto abaixo, é um exemplo disso). A questão só mostra como a pauta da acessibilidade é recente. A gente nunca tinha pensado em como essas pedras são ruins para quem não consegue andar…
Mas, então, como lidar com a pedra portuguesa? A solução está na própria fala da Mila: manutenção. A pedra em si atrapalha, mas não inviabiliza a mobilidade da pessoa com deficiência. Mas a pedra solta inviabiliza. Então, os administradores públicos precisam fazer todo o possível para que as pedras não fiquem soltas pelo caminho, atrapalhando a vida de um monte de gente, inclusive de gente sem deficiência. Eu mesmo já tropecei, caí e me ralei em pedras portuguesas sem manutenção de Campinas, onde fiz graduação, anos atrás.
E, ok, é bacana fazer a manutenção das pedras, é compreensível que seja um elemento cultural e que a extinção delas seja algo inviável. Mas nos próximos projetos de calçadas, por favor, façam calçadas “planas, regulares, largas e sem obstáculos no meio dela”, como pediu o Victor Caparica.
No lugar do outro
Eu estava intrigado com todas essas questões e fui tentar me colocar um pouco no lugar da pessoa com deficiência. Como eu não podia passar um tempo vivendo com uma venda nos olhos, um tampão no ouvido ou me locomovendo em uma cadeira de rodas, fui visitar a mostra fotográfica Cidade (in)Acessível, no SENAC Tatuapé.
A mostra é bem simples, mas o formato me deixou bastante comovido: a foto original, em tamanho grande, em geral era um cenário urbano com o qual as pessoas que não tem nenhuma deficiência estão absolutamente acostumadas. Embaixo, a foto, em tamanho pequeno, era levemente manipulada, para conseguir ser interpretada adequadamente por pessoas com deficiência, especialmente visual. Todas as fotografias foram feitas por pessoas com deficiência, mostrando situações do dia a dia que as incomodam. Eis alguns exemplos:
Esse tipo de mostra me comoveu porque a nossa vida passa ao largo desses pequenos detalhes que incomodam profundamente quem precisa de acessibilidade. Se nós vemos um buraco na calçada, desviamos. Se vemos uma moto ou um carro fechando o caminho, vamos por outro caminho. Para a pessoa com deficiência, essa não é uma opção. Ele vai ter sua rotina atrapalhada por obras públicas mal feitas ou por pessoas que não se importam em fechar os caminhos cidade afora.
Em relação às políticas públicas de acessibilidade, nossa função é cobrar e fiscalizar o poder público. Mas em relação às atitudes cotidianas, a responsabilidade é toda nossa. A Mila Correa enfatiza isso: “A coisa que mais atrapalha a acessibilidade é a falta do que os especialistas chamam de acessibilidade atitudinal. Adianta ter rampa em cada esquina, se o sujeito para nela com o carro, obstruindo a entrada? Não adianta. O passeio de todo mundo pode ser reformado, mas se não houver continuidade neles, não adianta, cada um escolhe um nível”.
Nunca esqueça: a acessibilidade também está nas suas atitudes, mesmo que você não tenha nenhuma deficiência.
Tem como colaborar? Colabore!
Depois de analisar um pouco mais de perto o cotidiano das pessoas com deficiência, ficou uma sensação inevitável: como a gente pode ajudar essa turma a desfrutar da cidade com a mesma facilidade que a gente? Daí eu li sobre o Wheel Map , uma plataforma colaborativa que ajuda a classificar os lugares de acordo com a acessibilidade.
Fui ver como funciona o Wheel Map. Então eu percebi que aquele problema que a Mila apontou sobre a ausência de indicadores sobre acessibilidade em plataformas consagradas, como o Google Maps, realmente atrapalha a vida das pessoas com deficiência. Em São Paulo, por exemplo, pouquíssimos lugares estão classificados pelo Wheel Map. É só olhar o mapa abaixo. As classificações são as indicações verdes, amarelas ou vermelhas. Os lugares ainda não classificados estão em cinza.
Então, saiba que você pode, sim, fazer algo para tornar mais acessível a vida das pessoas com deficiência. Não só classificando os lugares em aplicativos como o Wheel Map, mas mudando algumas atitudes cotidianas. Não estacione na frente da rampa. Não faça sua calçada em um nível mais alto que as demais calçadas. Não bloqueie os trilhos sensoriais. Todos esses equipamentos foram feitos para ajudar a vida de pessoas que não têm tanta facilidade quanto você pra desfrutar da cidade. E, ao fazer uma cidade boa para ela, nós fazemos uma cidade melhor para todo mundo.