Reclamar do trânsito é um dos assuntos preferidos de qualquer morador de metrópole pelo mundo, mas é um tema que vem se tornando pouco relevante. Falar em trânsito é enfocar apenas no excesso de veículos nas ruas e na falta de velocidade com que eles se deslocam, mas isso é apenas um pequeno pedaço da questão maior: a mobilidade, as condições que pautam necessidade, distância e condições para os indivíduos irem de um lugar para o outro. Quando se vê por esse parâmetro, várias outras questões surgem, até que vem a original, a raiz de tudo: Por que você precisa ou quer ir até algum lugar?

É essa reflexão que propõe José Viegas, secretário-geral do Fórum Internacional de Transportes da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico),  entidade que reúne 34 países – dos quais o Brasil não faz parte – que procura estimular o progresso e o livre comércio. Para o português, falar em mobilidade envolve muito mais que vias e veículos. É uma questão ligada a urbanismo, adensamento urbano e até tecnologia da informação. Afinal, a resposta à pergunta do parágrafo anterior é “porque precisa ter fazer algo em outro lugar”, e a possibilidade de nem precisar se deslocar para ter esse serviço não deve ser ignorada pelos planejadores urbanos.

Viegas está no comando do FIT desde 2012, após uma longa carreira que teve produção acadêmica e participação na elaboração de várias políticas e projetos de transportes com a iniciativa privada. O engenheiro está no Brasil para apresentar alguns de seus projetos e o trabalho do FIT, além de conhecer o que as cidades brasileiras têm desenvolvido. Ele concedeu uma entrevista exclusiva ao Outra Cidade e falou sobre o quanto a tecnologia já é fundamental nos planos de transportes das grandes cidades, de como as pessoas precisam se desapegar do carro como símbolo de status  e mostrou interesse em ver o que o Rio de Janeiro tem feito em transporte público.

Na área de mobilidade, o desenvolvimento tecnológico se dá tanto na inteligência da gestão quanto na evolução dos veículos em si. Qual desses caminhos tem mostrado mais interessante nos últimos tempos?

As duas andam ao mesmo tempo e não são rivais, não precisamos escolher uma. Mas o que verificamos é que a tecnologia via conectividade digital provoca mudanças muito mais radicais, intensas e rápidas que a tecnologia de tração, com a eletrificação dos transportes ferroviários e sua entrada nos rodoviários. O desenvolvimento de motores existe, mas é gradual. Na conectividade e em suas implicações para a organização dos sistemas de transportes, temos um  salto muito rápido, exponencial.

As cidades já estão preparadas para implementar sistemas inteligentes de transportes, mesmo em países em desenvolvimento como o Brasil?

Nenhuma cidade está 100% pronta porque esse processo da conectividade digital está evoluindo a cada dia. Há cidades que estão acompanhando mais esse processo, quase em tempo real, e há outras que estão mais atrás. Mas o Brasil tem um bom exemplo que é o Rio de Janeiro, que está na primeira linha do que se chama de smart city [“cidade inteligente”], em particular no meio da mobilidade.

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E o que você viu de mais interessante?

Eu ainda não vi, mas já li muito. Estou indo para o Rio nesta quinta e espero ter algum acesso a alguma informação. O Rio tem hoje informação em tempo real sobre praticamente todo o sistema de tráfego da cidade. Está tudo monitorado, acompanhado com câmeras e sensores. Assim, eles podem agir de forma muito rápida a qualquer perturbação que tenha no tráfego, como um incidente. Podem readaptar o tempo de sinalização de semáforos em menos de um minuto para ter em conta o estrangulamento que ocorreu ali, é quase em tempo real.

Em que outras cidades você viu coisas interessantes?

Tem um montão de coisas, e cada uma delas fazendo algo diferente. Cingapura e Xangai são dois exemplos fantásticos. Seul também. Na Ásia tem muita coisa acontecendo: são cidades muito grandes, em países muito adeptos de tecnologia, e estão fazendo coisas muito sofisticadas por lá. Na Europa também tem coisas acontecendo, mas os europeus são mais tradicionais, é mais difícil fazer porque há mais resistência dos próprios organismos governamentais e da população. Mas há coisa muito sofisticadas também. Mas cada um está fazendo uma coisa diferente, cada um vai por uma frente. E isso é bom porque permite que todos possamos aprender com os outros.

Até porque cada cidade tem sua própria necessidade e, por isso, sua própria solução.

Claro.

José Viegas, secretário-geral do Fórum Internacional de Transportes (Divulgação FIT)

José Viegas, secretário-geral do Fórum Internacional de Transportes (Divulgação FIT)

Nesta terça, em sua palestra em Brasília, você comentou que o “objetivo da mobilidade não é ganhar tempo, mas garantir acesso a todos”. O que quis dizer com isso?

Quando você se desloca, é porque quer aceder a qualquer coisa. A reflexão é ir à raiz do problema: você está em um sítio e o que você quer está noutro. Há duas formas de resolver esse problema: deslocar-se até lá ou essa coisa vier até você. Para proporcionar esse acesso, você podia trabalhar do lado do transporte ou do lado do urbanismo. Mas, mais recentemente, pode-se trabalhar do lado da tecnologia da informação. No passado, muitas vezes se deslocava para fazer qualquer coisa que hoje pode ser feita sem sair do lugar. E esse é o objetivo: o acesso ao que se precisa.

De que maneira isso influencia um plano de mobilidade?

Durante muitos anos, tomamos as decisões com base em como usar o solo, sem pensar no que isso traria na necessidade de transporte. E hoje, em todo o mundo, temos muita gente precisando se deslocar de periferias para serviços públicos que estão no centro, quando, se tivéssemos esses serviços descentralizado, as distâncias seria muito menores, muitas vezes feitas a pé. Ou talvez nem precisasse haver um deslocamento. A mobilidade não é uma necessidade, é um instrumento. A verdadeira necessidade é o acesso ao que se precisa. Quando se pensa assim, há um outro conjunto de soluções que se tornam disponíveis.

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O Fórum Internacional de Transportes tem acompanhado o desenvolvimento dessas possibilidades tecnológicas?

Muito. Nós trabalhamos muito no sistema de inteligência dos transportes, quer na questão da substituição da mobilidade por um acesso virtual, quer nas questões da organização das cadeiras de deslocamento de pessoas ou de mercadorias. Trabalhos muito nisso, e colaboramos com algumas empresas líderes de seus setores.

“A mobilidade não é uma necessidade, é um instrumento. A verdadeira necessidade é o acesso ao que se precisa”

Na internet, espalhou-se um vídeo de um megacongestionamento em uma estrada chinesa, com pessoas voltando a Pequim depois de um feriado. O que passa pela sua cabeça quando vê imagens como aquela?

É uma coisa que deveria ser evitável, mas que hoje em dia não se evita porque ainda não se sabe com antecedência que vai acontecer. Além disso, mostra como as pessoas continuam muito agarradas a seu próprio carro. Mas isso não é nada radicalmente novo, só um pouco maior. Eu estudei na Alemanha há 38 anos e, na época, quando se partia para as férias da neve, em fevereiro, muitas vezes ouvia na rádio que havia congestionamento de 120 km na autoestrada. Era um congestionamento que andava devagarinho, o de Pequim estava completamente parado. Mas o fenômeno não é nada de novo, só está um pouco maior.

O desenvolvimento econômico acelerado fez que muitos chineses passassem a ter acesso ao carro em pouco tempo. Isso pode servir como incentivo no desenvolvimento da tecnologia para mobilidade?

Pequim cresceu muito e as pessoas enriqueceram, mas a cidade fez muita coisa. Pequim e Xangai tinham rede de metrô com 10 ou 15 km, hoje têm mais de 400 km. Não há cidade no mundo que expandiu a rede de metrô como Pequim e Xangai. É muita gente, a motorização foi rápida e as pessoas precisam psicologicamente exibir seu carro. Isso é uma coisa que já aconteceu em outros países e os governos municipais da China estão trabalhando para criar alternativas de boa qualidade de forma que menos gente precise de carro, mas eles sabem que isso vai demorar alguns anos. O carro é um símbolo de status como muitas cidades no Brasil passam ou passaram. Em Portugal foi a mesma coisa há uns dez anos. Se a pessoa tinha dinheiro para ter um carro, ela comprava um carro e tinha que mostrar.

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O quanto é difícil mudar essa cultura?

É o status, isso ainda é muito importante para muita gente. Isso acaba se diluindo, mas em muitos casos é preciso criar alternativas de transporte para que as pessoas não se sintam mal servidas.

Muitas cidades, inclusive aqui no Brasil, foram idealizadas para que todo mundo tivesse carro. Como adaptá-las para uma nova realidade, em que nem todo mundo teria?

Na verdade, mesmo as cidades pensadas para todo mundo ter carro não eram realmente pensadas para todos. Quando chegaram a dois terços de carros em relação ao número de habitantes, elas já estavam terrivelmente congestionadas. Quando se falava em “todo mundo”, não era todo mundo. Era um carro por família. Mesmo assim, esses carros todos não cabem lá. Hoje há uma redensificação da cidade. Pessoal vindo para o centro, aumentando a densidade no centro, uma mistura funcional para aumentar os trajetos a pé.

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Adensar as cidades exigiria um aumento da verticalização das cidades?

Depende da cidade. Em cidades muito espraiadas, com casas muito baixinhas, obviamente a verticalização é um instrumento possível. Mas muitas vezes basta diminuir os espaços vazios. Há soluções de todos os tipos e não falta imaginação aos arquitetos e urbanistas para pensarem nelas.

O adensamento e a necessidade das pessoas de morarem mais próximas ao centro tem aumentado demais o valor do metro quadrado nos bairros centrais, a níveis insustentáveis em alguns casos. Como as cidades podem trabalhar para melhorar o transporte e se adensar melhor sem perder o controle do valor imobiliário.

O aumento da densidade não deveria levar a um aumento de metro quadrado. Você está consumindo menos terra para mais área construída e não há um aumento do custo tecnológico do edifício. Quando começaram a fazer essas edificações, há mais demanda que oferta e se inicia um processo de especulação imobiliária. E isso tem de ser combatido pelas forças públicas.

A discussão sobre mobilidade já está em um patamar bom?

Nem todas as pessoas entendem que essa questão envolve várias questões, mas em todo o mundo já há líderes políticos que entenderam que fazer mais estradas não vai resolver o problema. É preciso ter outras soluções para resolver o problema e dar acesso a todo mundo.