O que é? O rolê de São Paulo partiu quando ainda não havia luz, subiu a ladeira puxado por parelhas de burros, embarcou na ferrovia, desceu do bonde elétrico quando teve racionamento, subiu no ônibus improvisado e, quando chegou na estação, o metrô já partia lotado. O professor da USP José Eduardo de Assis Lefèvre conta a história da cidade que não só para como desce no ponto, pega atalho, anda sob a garoa e desembarca na plataforma.
Uma cidade que se move estranhamente
Os burros já foram a principal força motora de São Paulo, que se expandiu ao longo dos trilhos ferroviários. É difícil de imaginar, mas bem ali entre o Páteo do Colégio e a Bittencourt Rodrigues ficava o estábulo municipal, abrigo dos animais que moviam o transporte coletivo, puxando os bondes em parelhas pelas ladeiras paulistanas. Não era muito, mas já era mais rápido por andar a pé e suficiente para conduzir o desenvolvimento da cidade até a chegada da energia elétrica.
Para tentar entender o que se passou com o sistema de transporte local e qual o seu papel no desenvolvimento de São Paulo, José de Assis Lefèvre começou a estudar o potencial transformador da mobilidade urbana quando trabalhava na Empresa Municipal de Urbanização (a extinta EMURB, onde atuou até 2001), planejando a implantação de um sistema de trólebus, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Em 1986, ele escreveu sua dissertação de mestrado sobre as mudanças estruturais no centro de São Paulo que se deram em função do transporte coletivo.
Atualmente professor aposentado da USP em atividade, Lefèvre se lembra de quando o centro foi fechado para os veículos particulares e do transporte público, fazendo com que os paulistanos tivessem que caminhar longas distâncias para atravessar o perímetro reservado para a circulação de pedestres. A medida foi implantada pelo coronel Américo Fontenelle, que tinha sido bem sucedido em resolver problemas de tráfego no Rio de Janeiro e foi trazido para a capital paulista pelo então governador do estado, Abreu Sodré. Em fevereiro de 1967, quando a chamada Operação Bandeirante foi implantada, o coronel já enfrentava duras críticas a desativação do terminal rodoviário que ficava no centro, uma medida que ele lançou no dia seguinte a sua posse.
Além de fazer os paulistanos andarem mais, a Operação Bandeirante também congestionou as vias no entorno da chamada “rótula”, que contornavam a área onde veículos não podiam circular. Isso porque um dos dois eixos estabelecidos para direcionar o trânsito em no entorno do espaço era formado por ruas estreitas, nas quais os carros podiam seguir apenas no sentido horário, não comportando a mesma capacidade das avenidas amplas de sentido anti-horário.
Do ponto de vista técnico, tinha muitas coisas nas quais o Fontenelle estava certo. Só que ele errou na forma de implantar, foi feito de maneira absurda. Foi rápido, mas teve um impacto muito grande no sentido de fazer ver que era preciso planejar as coisas, não podia ser realizado daquela forma. Eu estava lá e vivi isso aí, os congestionamentos eram enormes.
José Eduardo de Assis Lefèvre, professor da Universidade de São Paulo
O professor relembra que era possível ouvir o barulho que as solas dos sapatos faziam dentro da área da rótula. O silêncio não durou muito: Fontenelle logo deixou o cargo e, no dia 25 de abril do mesmo ano, os bolsões de estacionamento que ficavam em ruas tangentes à rótula, como a Barão de Itapetininga, foram extintos e tudo voltou a ser como era antes. Ou quase. As avenidas São Luís e Ipiranga, entre outras que faziam parte do eixo anti-horário, ainda possuem o mesmo sentido.
Mobilidade e transformação
Para Lefèvre, a inserção de um nova tecnologia em si não impulsiona o desenvolvimento de uma cidade, mas ele é potencializado pelas novas possibilidades trazidas à vida urbana. Até a implantação da ferrovia, o transporte em São Paulo era feito basicamente a pé ou a cavalo. Só no final do século XVIII, os caminhos que cortavam o seu território e eram no máximo adequados para carros de boi se tornaram apropriados para o deslocamento de veículos de tração animal. Os animais vinham do sul do país, em tropas que cruzavam a cidade.
Esse cenário só começou a mudar mais rapidamente com a implantação da ferrovia São Paulo Railway, em 1867. Ela facilitou o acesso à utensílios domésticos e materiais de construção que passaram a ser transportados com mais rapidez e segurança. Deslocamentos dentro dos limites do município também passaram a ser feitos pelos trilhos da Central do Brasil, que passava pelos bairros do Brás, Penha e São Miguel. Talvez por isso ocupação das áreas ao longo dos trilhos por vilas operárias tenha sido mais intensa no entorno da área dessa ferrovia, que ligava São Paulo ao Rio de Janeiro e Minas Gerais.
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Até a inauguração do gasômetro, em 1980, as ruas eram iluminadas com lâmpadas de óleo de baleia. Com a chegada da iluminação pública a gás em as ruas se tornaram um pouco mais claras, mas foi a energia elétrica que impulsionou a vida noturna na cidade em 1900.
Como a transição dos bondes puxados por burros para os bondes elétricos exigiu algumas adaptações e obras, uma vez que eles eram maiores e mais pesados, o transporte coletivo movido a tração animal perdurou por mais de 30 anos em São Paulo. Eles só deixaram de fazer parte do cotidiano da cidade por volta de 1906. Mesmo o Viaduto do Chá, que foi inaugurado pouco tempo antes, em 1892, teve que ser reformado para receber os novos veículos.
Em 1924, além de ter sofrido o seu primeiro e único bombardeio durante a Revolução Constitucionalista, São Paulo também enfrentou um período de seca e racionamento de energia elétrica. A circulação de bondes foi reduzida e, como alternativa, surgiram os primeiros ônibus – desregulamentados e improvisados – com bancos em cima de carrocerias de caminhões. Enquanto o transporte sobre trilhos exigia a implantação de uma infraestrutura fixa, os ônibus exigiam apenas investimento nos veículos, que circulavam pelas vias públicas já existentes. Lefèvre conta que algumas das companhias de ônibus estavam associadas ao mesmo capital de empresas de loteamento, favorecendo a ocupação de determinadas áreas com o traçado das rotas percorridas pela sua frota. Antes mesmo das companhias de transporte coletivo sobre rodas começarem a operar, a Light, que era concessionária do sistema de bondes elétricos, já atuava dessa forma beneficiando a Cia City, que implantou o loteamento dos Jardins com fácil acesso à linha que passava pela rua Augusta.
O costume de almoçar ou não almoçar em casa, por exemplo, depende da distância da casa da pessoa até o local de trabalho e do tempo que leva para chegar. Se é rápido e tem transporte público, a pessoa pode ir almoçar em casa. A questão da existência dos restaurantes no centro para atender os trabalhadores da região está relacionada também com o sistema de transportes. Toda a vida da cidade se relaciona com a mobilidade.
José Eduardo de Assis Lefèvre, professor da Universidade de São Paulo
Segundo o professor da USP, os carros só começaram a fazer parte do cotidiano da cidade em 1910, restrito a algumas famílias de classe alta. As antigas companhias de charretes que eram disponibilizadas para aluguel passaram a substituí-las por veículos motorizados para compor a frota das primeiras empresas de táxi. Lá pelos anos 1920, o enorme vazio deixado pela demolição da antiga igreja da Sé foi tomado por automóveis. Nessa época, a cidade já sofria com congestionamentos, de maneira que administração pública começou a ser pressionada para abrir vias.
Em 1936, a prefeitura deu início às negociações para comprar o terreno da Chácara Velha na esquina da então rua São Luís com a Xavier de Toledo, com o objetivo de alargar essa última. O local pertencia ao Barão Souza Queiroz, que também era proprietário de todos os terrenos da São Luís, para onde acabou sendo deslocado o plano de alargamento da Xavier de Toledo. Era o início de um processo de adensamento que transformou a rua em uma avenida arborizada, com espaço para pedestres, árvores, praça, carros, ônibus e cada vez mais moradores. O professor, que escreveu um livro sobre a história da avenida, conta que o local passou por mudanças sem abrir mão de suas qualidades espaciais, mantendo calçadas largas e arborizadas em frente aos prédios espaçados.
Na disputa por espaço, os volumosos bondes acabaram cedendo para a circulação dos automóveis. Lefèvre comenta que, em algumas cidades como Amsterdam e Paris, eles funcionam muito bem em áreas segregadas do tráfego e em outros locais, como Lisboa, onde há carros e bondes dividindo a mesma via, a eficiência é comprometida. Ele relembra que até os anos 1980 os ônibus ainda eram precários, os passageiros tinham que embarcar em veículos altos que faziam muito barulho e eram muito quentes. Apesar de terem se tornado mais confortáveis, os ônibus ainda não são tão confiáveis. “Uma forma de conferir confiabilidade ao sistema é dar prioridade ao transporte público nas vias”, sugere. O metrô pode ser mais desconfortável nos horários de pico, mas, segundo Lefèvre, sua pontualidade e previsibilidade ainda são mais convenientes que as dos ônibus que circulam na capital paulista.
As condições de acesso aos lugares foram transformando, aos poucos, a distribuição urbana em São Paulo. Atualmente as principais vias do centro expandido estão abrindo espaços para a bicicleta, meio de locomoção que ainda não se tornou suficientemente conveniente para os paulistanos. “Para que haja uma vantagem efetiva no uso da bicicleta como meio de transporte é preciso de uma rede onde as pessoas possam usar a bicicleta, se é uma coisa desconectada – você pode usar em determinada avenida, que chega até um ponto a partir do qual não é possível seguir em frente, não funciona.” O professor defende que é preciso mais integração com outros sistemas de locomoção e uma estrutura mais coerente, para que seja possível chegar a destinos diversos com um mesmo modal.
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Com a exceção de algumas mudanças abruptas, como a Operação Bandeirante, as mudanças nas condições de ir vir tiveram um papel importante em São Paulo nesses seus 462 anos de inquietação. Ainda que os paulistanos tenham os seus motivos para andar por aí portando engenhosos planos pessoais de gerenciamento de imprevistos, sua história mostra que nem tudo que se move na maior cidade do Brasil é totalmente desprovido de sentido.