O coração de Jonah Lomu não aguentou. O neozelandês morreu aos 40 anos na manhã desta quarta (noite de terça no horário brasileiro) em Auckland, Nova Zelândia, vítima de ataque cardíaco provavelmente causado por um problema crônico no rim. O jogador que dominou os gramados do rúgbi mundial na década de 1990 por unir força (pesava 119 kg), altura (1,96 metro de altura) e velocidade deixou os neozelandeses de luto menos de um mês após sua seleção conquistar o tricampeonato mundial. Mas o legado de Lomu não é apenas o de um dos maiores e mais conhecidos atletas de seu esporte. É também de um símbolo da relação entre a Nova Zelândia e os polinésios.
O ícone do rúgbi tem origem tonganesa e sua morte deixou Tonga em choque. O ministro do esporte do país, Fe’ao Vakata chegou a declarar: “são notícias muito, muito tristes para Tonga, para a Nova Zelândia e para todo o rúgbi. Jonah Lomu tem sido um ídolo para todos nós aqui em Tonga e um bom modelo para nosssos praticantes de rúgbi jovens. (…) Eu penso e espero que seu legado viva não só nos neozelandeses, mas também nos corações e mentes de todos os tonganeses”.
Lomu e sua família são personagens de um fenômeno social característico da Austrália e da Nova Zelândia: a migração massiva de moradores das ilhas do pacífico para as grandes cidades. Os pais de Jonah, Semisi e Hepi, vieram de Tonga para Greenlane, subúrbio de Auckland onde Jonah nasceu. Com um ano de idade, Jonah voltou para Tonga, onde viveu por seis anos com a irmã mais velha de sua mãe, Longo. De volta à Nova Zelândia, viveu no sul de Auckland, região caracterizada pela violência e pelas brigas de gangues entre diferentes grupos de migrantes, sobretudo nos anos 80. Brigas que levaram uma gangue de samoanos a matar e decapitar, em 1988, David Fuko, tio de Jonah. Tudo isso no meio da rua, na frente de um shopping center.
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Fuko era da gangue de tonganeses do sul de Auckland. Essa seria a tendência natural de Jonah, ainda mais considerando o pai alcóolatra e que a infância em Tonga atrasou seu aprendizado de inglês. Isso o levava naturalmente a ficar mais próximo dos outros imigrantes tonganeses na periferia de Auckland. É um processo parecido com o que acontece hoje nas periferias das grandes cidades européias, repletas de migrantes africanos, do leste europeu ou do Oriente Médio, que formam uma cultura de gueto.
Mas por que os habitantes de Tonga (e das demais ilhas do Pacífico) migram tanto para a Nova Zelândia e para a Austrália? O primeiro fator é óbvio: oportunidades de emprego. Na maioria das vezes, empregos temporários em serviços de pouca qualificação. No censo de 1971, existiam 1.273 tonganeses na Nova Zelândia. No início da década de 70, leis facilitaram a imigração de curta duração entre as ilhas do Pacífico e a Nova Zelândia, atraindo muitos trabalhadores não qualificados, como os pais de Jonah, por exemplo. Em 1986, o número de tonganeses na Nova Zelândia tinha saltado para 13.600. E, em 2013, eram 60.336 tonganeses étnicos na Nova Zelândia, sendo 24.951 deles nascidos em Tonga. A pequena ilha tinha, em 2013, um total de 105.323 habitantes totais residindo na vizinha maior e mais rica. Quase um quarto da população tonganesa se mudou para a Nova Zelândia.
Os números reais são ainda mais impressionantes, pois o levantament oficial não conta o trabalhador temporário. Em 1987, a Nova Zelândia introduziu vistos temporários para samoanos, tonganeses, fijianos, cookenses e niueanos. Muitos desses trabalhadores vinham trabalhar no setor rural, que não atrai a atenção de neozelandeses. Os contratos permitiam que polinésios fossem para a Nova Zelândia, trabalhassem em momentos de plantio e colheita e depois voltassem para seus países. Esse modelo de trabalho se disseminou tanto que foi alvo de lei regulamentando em 2007.
A comunidade tonganesa na Nova Zelândia sustenta a própria economia de Tonga. Em 2001, 37% do PNB do país era fruto de remessas vindas do exterior. Outras ilhas do Pacífico têm nível de dependência similar de remessas do exterior na economia. A questão é tão importante que o governo neozelandês mantém um “Ministério de Negócios das Ilhas do Pacífico“.
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Só que o perfil demográfico da migração para a Nova Zelândia mudou. Atualmente, se falam cerca de 60 línguas no subúrbio de Auckland, um dos mais diversos do mundo. O desenvolvimento econômico e a calmaria social na Nova Zelândia permitiu não apenas a integração de famílias como a de Jonah Lomu ao ambiente neozelandês, mas também atraiu novos contingentes de imigrantes de países da Ásia, África, do Oriente Médio e até de países como o Brasil.
Nesses subúrbios, a diversidade se reflete não apenas na quantidade de etnias, mas também no perfil das crenças religiosas: de acordo com o último censo neozelandês, 44% dos moradores desses subúrbios se dizem cristãos, 10% se dizem hindus e 6% se dizem islamitas (para efeito de comparação, o país todo tem 2% de hindus e 1% de islamitas). Esses imigrantes vieram em duas grandes levas: uma no início dos anos 2000 e outra nos últimos 3 anos, como mostra o gráfico de imigração neozelandês:
A Nova Zelândia vem adotando uma política de reconciliação, não apenas com imigrantes das ilhas do Pacífico, mas também com seus habitantes autóctones, da etnia maori, que sofreram, historicamente, com represálias da população de origem europeia. Essa política teve suas bases lançadas no início da década de 70, com os acordos de imigração com os países do pacífico que permitiram com que famílias como a de Jonah Lomu fossem integradas ao ambiente neozelandês e se vissem como neozelandesas.
Os All Blacks (apelido da seleção de rúgbi do país) já teve mais de 50 jogadores de origem samoana, bem como dezenas de descendentes de tonganeses e fijianos. O desafio atual está em integrar, de forma similar ao povos oriundos das ilhas do Pacífico, essas novas levas de imigrantes que estão surgindo, de países muito diversos entre si, em busca de trabalho e de qualidade de vida em um país desenvolvido, com um dos melhores IDHs do mundo e com um sistema de educação e de saúde de excelência.
Parte dessa política de reconciliação está na afirmação de uma identidade nacional própria neozelandesa, ligada aos símbolos nacionais. A ideia de mudar a bandeira do país, abolindo o Union Jack (a do Reino Unido) para estabelecer, em referendo, um desenho que reflita símbolos nacionais do país, como o silver fern (folha de samambaia) e o Koru, símbolo maori que é uma espécie de silver fern enrolado. As propostas de bandeiras do país que passarão por um referendo nos próximos dias (entre 20 de novembro e 11 de dezembro) são essas. A vencedora será colocada em uma disputa direta, também com votação direta da população, com a atual.
Em tempos de organização de periferias em guetos na Europa e da formação de células terroristas em locais como a periferia de Bruxelas, os subúrbios de cidades como Auckland mostram que parte da solução está naquilo que aconteceu com Jonah Lomu: em situação vulnerável, foi integrado à sociedade por meio da educação e do esporte, sendo tirado da cultura do gueto para se integrar a uma das maiores seleções esportivas de todos os tempos. Porque seus mentores o trataram de forma inclusiva, respeitando sua origem tonganesa, mas integrando-o à sociedade neozelandesa.
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Claro que o processo tem seus altos e baixos. Ainda há casos de preconceito e diferenças sociais entre as diferentes etnias. Em 2007, a polícia neozelandesa prendeu 16 tahoes (tribo maori) por supostamente estarem organizando e treinando um grupo terrorista. Houve protestos em Wellington (foto no alto da página), combatidos de forma violenta pelas autoridades. Mas houve um pedido de desculpas oficiais por parte do comando da polícia e o governo tomou a iniciativa de retornar os danos causados.
Lomu foi uma grande perda. Irreparável. E, na tristeza da sua vida, o melhor a se fazer é relembrar que sua história de vida nos mostra que o melhor caminho para lidar com os imigrantes é sempre o da inclusão, e não o da segregação. É o que mostram os subúrbios de Auckland.