O que é? E se uma das maiores cidades dos EUA decidisse repensar sua estrutura de mobilidade urbana? E se essas medidas implicassem em mudanças de hábitos e culturas arraigadas? E se essa cidade fosse historicamente reconhecida por privilegiar maciçamente os automóveis? Esse processo de mudança começa a tomar forma em Los Angeles, famosa por ser uma cidade voltada aos carros. Danilo Cersosimo explica por que isso aconteceu – e qual o impacto até agora.
Em agosto deste ano, a Câmara Municipal de Los Angeles aprovou o Plano de Mobilidade 2035. Ele se propõe a mudar o modelo centrado nos carros que a) ergueu os pilares de planejamento urbano ao longo dos últimos 60 anos b) influenciou a cultura, a sociedade e o comportamento de moradores e visitantes. O plano é bastante abrangente – e a gente vai tentar explicá-lo aqui no Outra Cidade.
Los Angeles, São Paulo
O plano de mobilidade urbana de Los Angeles faz parte de um planejamento amplo, de longo prazo. Ele pretende repensar e mudar a lógica que vem pautando a cidade desde, pelo menos, a década de 50. Naquela época, a rede de infraestrutura de estradas e rodovias dos Estados Unidos foi ampliada após a promulgação do Federal Highway Act de 1956. A lógica para esses investimentos era simples: manter a economia americana forte, com indústrias grandes (como a de automóveis) e uma rede de transporte rápida e eficiente (para a época). Isso impulsionou as montadoras e estabeleceu o automóvel como meio principal de transporte nas grandes cidades. Pode não parecer, mas até algumas décadas atrás Los Angeles privilegiava o transporte sobre trilhos.
Hoje, com mais de 12 mil quilômetros de ruas e avenidas, correspondentes a 28% do total da área urbanizada da cidade, Los Angeles enfrenta sérios problemas com tráfego lento, poluição sonora, má qualidade do ar e índices estarrecedores de violência no trânsito. Ao todo, são mais de 36 mil pessoas mortas ou feridas por ano, ou seja, uma média diária de aproximadamente 100 acidentes sérios ou fatais por conta de veículos automotores, segundo dados que constam no novo plano de mobilidade.
Para se ter uma ideia do estrago, Los Angeles tem 30% da população de São Paulo e 32% mais acidentes com mortos ou feridos. É mais fácil morrer no trânsito lá do que no Brasil.
Esses problemas, claro, não se restringem a Los Angeles. Inúmeras cidades brasileiras vêm passando por dificuldades muito parecidas, e São Paulo talvez seja o caso mais semelhante. Elas têm uma extensa e populosa região metropolitana, com aproximadamente 20 milhões de pessoas (no caso paulistano) e 17 milhões de habitantes, no caso de Los Angeles. Também sofrem com falta de metrô. A extensa mancha urbana de Los Angeles e seus subúrbios não são bem servidos por esta alternativa de transporte – são apenas 80 estações de metrô. São Paulo tem 67. Para se ter uma ideia, Washington, capital dos EUA, tem uma população de 660 mil pessoas e uma malha metroviária com 91 estações.
Além de todos os esses problemas, elas também vivem envelhecimento populacional. Los Angeles foi construída para uma população jovem, que dirige carros. Quando as pessoas mudam, a infraestrutura precisa se adaptar. Atualmente, a cidade tem 3,8 milhões de habitantes. Se as estimativas se confirmarem, terá 4,3 milhões de moradores até 2035, de acordo com projeções do governo. É uma sociedade que cresce mais lentamente – e envelhece mais rápido. Uma população mais velha pede um tipo de transporte muito além do automóvel. Afinal, há um ponto em que idosos não querem, ou não podem, dirigir. Além disso, cidades pensadas só para carros não pensam muito em calçadas – que são fundamentais para qualquer cidade que tenha muitos idosos.
Finalmente, não bastassem esses problemas, toda a região metropolitana de Los Angeles vem sofrendo com a escassez de chuvas e estiagem. A Califórnia, onde a cidade está, passa por uma das maiores secas da história. E, como a gente sabe, a combinação de seca com carros deixa um rastro doloroso de alergia e falta de ar.
Por causa da soma de todos esses fatores, há uma crescente demanda por melhoria na prestação dos serviços públicos e na qualidade de vida. A conversa é semelhante em outras cidades muito abaixo da linha do Equador – e é por isso que o caso de Los Angeles é tão interessante para as grandes cidades brasileiras.
Rua que recicla água
As diretrizes de mobilidade de Los Angeles estão inseridas no plano diretor da cidade e alinhadas com múltiplas esferas de governo, muito além do município. O departamento de planejamento urbano regional está no jogo. Órgãos e secretarias, como com o L.A. County Bicycle Master Plan e o L.A. Union Station Master Plan, também. Isso faz uma baita diferença. Não é um plano só da cidade – é um plano da área de influência da cidade. Aliás, vale ler o texto do Leonardo Rossatto sobre o ABC paulista e a necessidade de um órgão que faça com que as cidades conversem entre si, de uma maneira eficiente e organizada.
No plano, temos os objetivos que definem as prioridades da cidade em termos de mobilidade urbana. Cada um tem metas e políticas públicas que ajudarão a mensurar o andamento dos trabalhos e o sucesso atingido. Os cinco pilares de sustentação do plano de mobilidade são os seguintes:
- Segurança em primeiro lugar: redução de acidentes, velocidade, proteção, segurança, educação no trânsito e cumprimento das leis.
- Infraestrutura de alto padrão: investimentos no aprimoramento e padronização da infraestrutura multimodal de transportes, bem como em informação inteligente para promoção do uso dessa nova infraestrutura.
- Acesso para todos: acessibilidade, uso da terra, operações, confiabilidade, gerenciamento de demanda de transporte e conexões da comunidade.
- Colaboração, comunicação e informação: informação em tempo real, dados abertos, transparência, monitoramento, cooperação interdepartamental e gerenciamento inteligente de dados.
- Ambientes limpos e comunidades saudáveis: meio-ambiente, saúde, benefícios do transporte ativo, ar limpo, combustíveis não poluentes e eventos de rua abertos.
Para atingir tais objetivos, será necessário repensar o uso do espaço urbano por meio da oferta de um sistema de transporte que contemple as necessidades dos cidadãos. Não se trata de abolir o uso do automóvel, mas sim de pensar a diversidade e a complexidade da cidade como um todo, oferecendo um leque de opções de mobilidade. Esses valores já estavam contemplados no The Complete Street Act, instituído em 2008. Basicamente, ele diz que a cidade deve oferecer sistemas multimodais de transporte. Porém, até agora, não tinha se materializado em um plano.
Melhorar a infraestrutura e as condições das ruas e calçadas, visando prover transporte eficiente e seguro para motoristas, ciclistas e pedestres (com especial atenção àqueles mais vulneráveis, como portadores de deficiências, idosos e crianças), passa a ser uma das metas. Só um ambiente menos hostil aos que não dirigem pode trazer as pessoas de volta às ruas. O plano pretende expandir o papel das ruas como espaço público. Elas deixam de ser um ponto de passagem e viram zona de convivência – inclusive motorizada.
Haverá forte investimento no uso de tecnologias que aprimorem os serviços de informações em tempo real, facilitando o acesso a esquemas de compartilhamento de automóveis, bicicletas, vans, entre outros, e a horários, itinerários e serviços de transportes coletivos. A proposta é fazer com que os cidadãos utilizem o novo (e aperfeiçoado) sistema multimodal que a cidade pretende construir nos próximos anos.
Investimentos serão feitos visando a uma redução na emissão de gases de efeito estufa por meio de um sistema de transporte mais sustentável. Por fim, pretende-se criar ruas que sejam capazes de reaproveitar parte da água das chuvas, usando sistemas de filtragem e tratamento (e nós, do Outra Cidade, falaremos desse sistema em breve).
Participação pública
Apesar do plano ter sido discutido exaustivamente entre os órgãos públicos responsáveis e entidades da sociedade civil, houve e ainda há atritos – e muitas polêmicas sobre o tema. Não é fácil romper velhos hábitos e quebrar paradigmas.
A situação é muito parecida com o que vemos em São Paulo atualmente, em relação às ciclovias. Em Los Angeles, reclama-se que as obras do novo plano de mobilidade trarão muitos inconvenientes aos seus cidadãos, como maior tempo gasto em congestionamentos por conta de vias e acessos obstruídos devido às obras. Também há argumentos questionando a efetividade do plano no longo prazo. Motoristas, ciclistas e pedestres parecem não se entender. Nessa semana, o grupo Fix the City entrou com ação judicial paralisando o andamento do plano de mobilidade de Los Angeles.
Quem é a favor do plano pode ficar bravo. Mas lembre-se: foi só por causa da participação das pessoas que áreas como o sul da ilha de Manhattan, em Nova York, não são cortadas por um enorme Minhocão. Pode levar mais tempo, mas não dá para tratar a participação das pessoas como um incômodo para o progresso.
Do meu lado, acredito que a proposta da cidade de Los Angeles pode, num primeiro momento, parecer “anticarro”. Mas, na verdade, ela é pró-indivíduo. O automóvel não é o eixo das mudanças pretendidas para a cidade. O eixo das mudanças é o ser humano e sua relação com o espaço em que vive.
O automóvel é uma peça desse quebra-cabeça e continuará sendo contemplado, mas ao contrário do que existe lá atualmente, as mudanças redesenharão parte do espaço urbano no intuito de dar a oportunidade de todos escolherem como querem se locomover e se relacionar com a cidade. É uma boa inspiração para as nossas cidades – e precisamos acompanhar isso de perto.