A gratuidade do transporte público virou tema de discussão em praticamente todo o Brasil em 2013, quando o Movimento Passe Livre levou para a rua multidões contra o aumento da tarifa nas capitais. Mas essa não foi a primeira vez que a possibilidade de implantação da tarifa zero foi tema de debate público para todos os usuários. Ela já tinha sido proposta pela administração municipal de São Paulo no início dos anos 1990 e, sempre que volta para o debate – praticamente todo aumento da passagem – com ela voltam as questões sobre a viabilidade da reivindicação do MPL. Como o município pode pagar a conta da gratuidade? Qual seria o impacto na organização do sistema de transporte? Como funcionariam as licitações das concessionárias?
O mais perto que a cidade de São Paulo chegou de implantar o passe livre foi em 1990, quando a prefeitura elaborou uma proposta para a sua implantação. Na época, o sistema era operado pela Companhia Municipal de Transportes Coletivos e o valor cobrado aos usuários era de Cr$ 35. Paulo Sandroni, então presidente da CMTC, acredita que, de lá para cá, algumas medidas tornaram as condições mais favoráveis para a extinção da tarifa. “Desde 2002 temos a cobrança da alíquota progressiva do IPTU. Na época, era preciso que a Câmara Municipal aprovasse o imposto predial progressivo e foi isso que impediu que houvesse o financiamento necessário para a tarifa zero”, explica.
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Sandroni defende que os custos da tarifa zero precisam ser cobertos por uma fonte de financiamento estável e sustentável. A aprovação da alíquota progressiva tornaria possível o aumento do IPTU pago pelos proprietários dos imóveis mais valorizados e também uma elevação em menor proporção da taxa paga pela classe média, sem alterações para as outras faixas da população. “A tarifa zero só seria implantada uma vez que essa fonte de financiamento fosse garantida. Aqui é uma batalha que tem uma natureza política muito forte de distribuição de renda. Os mais pobres receberiam um benefício pago pelos mais ricos”, diz.
A estimativa de Sandroni é de que o sistema de cobrança (cobrador, emissão de bilhetes, carga e recarga de cartão) pelo transporte público seja responsável por aproximadamente 20% do valor da tarifa. Boa parte disso seria eliminado com o passe livre. O projeto de 1990 previa que a frota de ônibus, na época de 10 mil veículos, fosse aumentada em 50%. Os resultados esperados eram a queda no número de carros circulando, porque alguns usuários de carros passariam a usar os coletivos gratuitos. Além disso, quem comprometia parte significativa da renda pagando a tarifa poderia dar outro destino a esse dinheiro, enquanto o aumento de imposto da classe média seria proporcional ao valor que anteriormente era gasto com o transporte dos dependentes da família, muitas vezes proprietária de um único carro.
“A grande questão da tarifa zero é acabar com a restrição, com a catraca”, diz Victor dos Santos, membro do Movimento Passe Livre (MPL). O MPL esteve à frente das manifestações contra o aumento da tarifa também em 2016, quando a passagem de ônibus em São Paulo passou de R$ 3,50 para R$ 3,80. O aumento foi mantido e a prefeitura argumenta que destina R$ 1,9 bilhão subsidiando o sistema de transporte, sendo que o custo do sistema atual é de R$ 5,71 por passageiro pagante. “Não conseguimos o cumprimento da reivindicação principal, mas achamos importante protestar, fazer os atos para marcar nossa posição e justamente para fazer contatos, criar laços de solidariedade.”
Para o MPL, o IPTU não é a única forma de subsidiar a implantação da tarifa zero. A municipalização da Contribuição de Intervenção de Domínio Econômico (Cide) e uma reforma tributária ampla estão entre as possibilidades citadas pelo movimento. A Cide é um imposto que normalmente vai para o governo federal, que passaria a ser recolhido pelas prefeituras para que elas pudessem arcar com os custos dos congestionamentos. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) os congestionamentos aumentam os preços das passagens de ônibus em aproximadamente 9,6%. Segundo o Diretor de Gestão Econômico-Financeira da SPTrans, Adauto Farias, cada R$ 0,05 recolhidos da gasolina e etanol diminuiriam em R$ 0,10 a tarifa do usuário.
“Justificam dizendo que não tem dinheiro para investir no transporte, que precisa tirar de outras áreas. Por exemplo: baixou a passagem, mas agora terá que aumentar o IPTU ou tirar da saúde. Não precisa de nada disso, a questão é arrecadar mais dinheiro dos ricos e menos dinheiro dos pobres”, defende Santos. A própria prefeitura afirma que o sistema de transporte público representa uma economia de R$ 717,2 milhões aos cofres públicos em acidentes, emissão de poluentes, custos de operação dos demais meios de transporte e tempo de viagem das pessoas. Essa economia aumentaria caso a tarifa fosse extinta, mas é justamente a falta de recursos é apontada como principal impedimento.
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“Estão sendo estudadas opções de novas fontes de financiamento que devem contemplar, basicamente, os beneficiários do sistema de transporte. Considerando a hipótese de implantação do passe livre, a cobrança de um valor, mesmo que simbólico, seria recomendado para efeito de planejamento, controle e uso adequado da rede de transporte público”, diz o diretor da SPTrans. O valor do subsídio da prefeitura inclui o custo da gratuidade do transporte para idosos, estudantes com passe livre e pessoas com deficiência, que juntos representam cerca de 20% dos usuários do transporte público.
Passe livre: modo de fazer
Quando questionado se o mesmo aumento no número de veículos do transporte público operando – aquele de 50% previsto em 1990 no plano de implantação do passe livre – valeria para os dias atuais, Sandroni foi cauteloso. Ele acredita que cálculos precisam ser feitos, mas talvez não fosse preciso aumentar tanto a frota, uma vez que a malha metroviária se tornou um pouco mais extensa ao longo desse período – apenas as linhas azul (sem o trecho entre Santana e Tucuruvi) e vermelha existiam na época. “Um problema adicional seria a integração com o metrô, que também deveria adotar o mesmo sistema. Se o governo do estado achar que não é viável, então as pessoas continuariam a pagar para usar o metrô, mas não pagando pela tarifa do ônibus, então o bilhete de integração seria muito mais barato”, explica.
O metrô historicamente é sustentado pela cobrança da tarifa, mas o governo do Estado se comprometeu a repassar dinheiro à Companhia do Metropolitano de São Paulo para compensação tarifária de gratuidades e integrações. Em março, foi revelado que o governo deu um calote de R$ 332,7 milhões que deveriam ter sido destinados para cobrir prejuízos de tarifa.
Sandroni também defende que a implantação da tarifa zero teria que ser acompanhada de um conjunto de outras medidas, como a implantação de corredores de ônibus. Ainda que tenha se comprometido a entregar 150 km de corredores até o fim do seu mandato, Fernando Haddad deve terminar seu mandato na prefeitura com apenas um terço da meta cumprida.
O modelo de contratação das empresas prestadoras do serviço de ônibus gratuito para todos não é consenso dentro do MPL, conta Santos. “É uma coisa que a gente está discutindo internamente.” A discussão se dá entre duas propostas: a municipalização, que não necessariamente exclui as empresas prestadoras de serviço, e a estatização, na qual o controle é exercido inteiramente pelo poder público.
“A operação se daria via municipalização: nesse caso, você pagaria exclusivamente pelo serviço prestado, em um blend de composição de custos um pouco diferente do que a atual administração está propondo. Quilômetro rodado seria o mais importante, mas também passageiros transportados e em especial a qualidade do veículo”, propõe Sandroni. A inclusão da qualidade do veículo como indicador determinante para o valor do repasse às empresas seria um modo de estimular a incorporação de melhorias nos veículos da frota.
Atualmente, 72% dos usuários de transportes públicos viajam de ônibus e os 28% restantes de metrô. Outra questão a ser discutida a respeito da implantação da tarifa zero seria a adoção ou não do transporte gratuito pelo sistema intermunicipal. Se o financiamento do sistema for basicamente sustentado pelo IPTU, uma negociação teria que ser feita com as cidades da região metropolitana para que a gratuidade também fosse praticada fora dos limites da capital paulista.
Um direito básico
O Movimento Passe Livre defende que o transporte é um serviço público fundamental, uma vez que garante que as pessoas tenham como ir até a escola ou hospital e ter acesso a outros direitos essenciais. Nesse sentido, há dois pontos de apoio na legislação que dialogam com essa proposta.
Os artigos 8º, 9º e 10º da Lei de Mobilidade Urbana, de 2012, determinam que os governos tenham controle sobre o valor da tarifa e também contemplam a possibilidade de oferecer descontos para que a demanda seja incrementada em dias e horários específicos. A emenda constitucional 90/2015 inclui o transporte como direito social ao lado de e educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer e segurança foi promulgada pelo Congresso Nacional em setembro do ano passado. Essa medida estava prevista na PEC 74/2013, de autoria de Luísa Erundina, prefeita de São Paulo em 1990, e viabiliza a criação de um fundo para financiar o transporte público.
Para Sandroni, há uma série de vantagens técnicas, econômicas e também sociais na implantação do transporte público gratuito. “Claro que essa discussão poderia levar bastante tempo, não é algo para ser decidido de uma hora para outra. É uma oportunidade para discutir a cidade e também sistemas diferenciados ou ideias oferecem para solucionar problemas aparentemente insolúveis”, defende.
Enquanto isso, em algumas metrópoles da América Latina onde a poluição do ar atingiu níveis críticos, como Medellín e Cidade do México, o transporte gratuito foi liberado às pressas como alternativa para quem teve que deixar o carro em casa devido às restrições de emergência. Na cidade colombiana, carros, motos e caminhões foram proibidos de circular pelo centro por 24 horas e liberaram a entrada gratuita no metrô nos horários de pico. Na capital mexicana, os passageiros não precisam pagar para embarcar nos coletivos e inicialmente o metrô também havia suspendido a cobrança.
No entanto, os ônibus do sistema de transporte público na Cidade do México não possuem nenhum tipo de regulação que restrinja as emissões de poluentes pelos coletivos. Os carros devem se submeter a uma vistoria para não precisarem entrar no rodízio de veículos por placa, mas a corrupção fez com que muitos conseguissem os atestados mesmo emitindo mais poluentes que o limite estabelecido.
Em São Paulo, 95% dos ônibus são movidos a diesel, e uma auditoria das práticas contábeis das empresas concessionárias revelou uma divergência de R$ 38 milhões entre os saldos declarados e o contabilizado pelos auditores externos. Para se ter uma ideia da participação do sistema de transporte público na emissão de poluentes de uma grande cidade, em Porto Alegre ele chega a ser responsável por dois terços dos gases de efeito estufa liberados.
A implantação do passe livre, para que se sustente, precisa de planejamento e dinheiro. Pode não ser necessariamente recursos tirados de outros serviços públicos como saúde e educação, pode até não custar os R$ 8 bilhões previstos por Haddad no início do ano. Mas é um exercício interessante de “e se”, que nos leva a pensar as prioridades de cada cidade e o impacto da mobilidade na qualidade de vida das pessoas.