O que é? O conceito de cidades resilientes surgiu nos últimos anos, em função dos desafios impostos pelas mudanças climáticas, ocorrências de desastres, da rápida urbanização e da recessão econômica. Cidades resilientes são aquelas capazes de responderem e se adaptarem a estes cenários. O que os ecos do desastre ocorrido em Mariana há duas semanas têm a nos ensinar sobre isso?
Uma tragédia de impacto incalculável
Com o choque e a comoção, vem junto a sensação de vulnerabilidade e fragilidade. Acidentes e infortúnios acontecem, mas o fato é que pouco sabemos sobre o funcionamento e a manutenção de infraestruturas como as das barragens que romperam ou mesmo de obras (quem não se lembra do acidente na linha amarela do Metrô de SP em 2007?). Muitas vezes, só se percebe o quão despreparadas as cidades brasileiras estão quando está muito tarde, como vimos na “maior tragédia ambiental brasileira”, como a Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, chamou o rompimento das barragens de rejeitos ocorrido há duas semanas em Minas Gerais.
Vidas foram perdidas, famílias perderam suas casas, posses, memórias e lembranças afetivas – o lugar onde essas pessoas nasceram, cresceram e viviam não existe mais. A lama varreu tudo. O desastre impacta também a vida das cidades banhadas pelo Rio Doce e de seus moradores, independentemente do seu tamanho, poderio econômico ou de sua localização. O estrago trará graves consequências socioeconômicas e culturais – isso sem contar a perda irreparável da fauna e da flora de um dos rios mais importantes do país.
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A extensão da tragédia é enorme e nos alerta para o fato de que mesmo algo que ocorre a quilômetros de distância da nossa cidade pode também nos impactar de alguma forma. Ao menos 23 municípios foram atingidos, e muitos deles já vinham sofrendo com uma crise hídrica que pode se acentuar. Tanto a economia pesqueira quanto o abastecimento de água dessas localidades foram severamente afetados – e, em alguns casos, suspensos. Coletas feitas para análise apresentaram altos índices de ferro e mercúrio, componentes tóxicos que inviabilizam o tratamento.
Até mesmo a cidade de Uberaba (MG), que fica no Triângulo Mineiro e está a cerca de 580 km de Mariana teve seu fornecimento de água cortado na última quarta-feira. Isso se deu por conta da falta de sulfato de alumínio, produto utilizado no processo de tratamento da água. O fornecedor deste material priorizou (compreensivelmente) o atendimento aos municípios atingidos na região da tragédia.
A enxurrada de lama destruiu pontes, estradas e comprometeu o funcionamento do sistema de telefonia da região afetada. Assoreou e mudou o curso do Rio Doce e alguns de seus afluentes. O material tóxico pode alterar o pH (índice de acidez) do solo, causando prejuízos à atividade agrícola e afetando muitas economias locais. Por fim, o mar de lama chegou ao litoral capixaba nesse final de semana, causando prejuízos irreparáveis ao ecossistema marinho da região.
E se fosse um terremoto?
Inicialmente, cogitou-se a hipótese de um abalo sísmico ter causado o rompimento das barragens da Samarco. Porém, o governo federal trata a tragédia como “desastre tecnológico”, ou seja, falha da infraestrutura física. No entanto, qualquer que fosse o motivo do acidente, um plano de mitigação de risco deveria existir para ser posto em prática em situações como essa.
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Atualmente, as cidades enfrentam inúmeros desafios provenientes do crescimento das populações urbanas e das crescentes demandas por moradia, alimentação, água, transporte e outras infraestruturas ou serviços que garantem o bem-estar das pessoas. Além disso, precisam lidar com as implicações de riscos naturais e de mudanças climáticas cada vez mais imprevisíveis (os frequentes tornados no Sul do Brasil são mais um exemplo). Investimentos significativos se fazem necessários para lidar com uma variedade de intempéries como inundações, tempestades, ondas de calor, elevação do nível do mar, secas, erosão dos solos, insegurança alimentar e escassez de água.
Alguns governos ao redor do mundo já estão modificando padrões de investimento para incluir estratégias de adaptação às alterações climáticas, buscando melhorar os sistemas tecnológicos urbanos e suas infraestruturas com base em experiências passadas ou através de experiências vividas por outras cidades.
No entanto, as mudanças climáticas não são o único evento externo para o qual as cidades devem fazer intervenções isoladas para se adaptar. É um processo evolutivo de mudança, sobreposto em padrões de rápida urbanização, sistemas de infraestruturas existentes e das instituições estabelecidas. Assim, ações baseadas no conceito de cidades resilientes são necessárias para garantir que as cidades possam desempenhar planos de prevenção, contenção e reconstrução eficazes no futuro.
Cidades resilientes
Em 2010, a ONU lançou um guia para gestores públicos identificarem e gerenciarem riscos, bem como para a construção de cidades mais resilientes. Tal plano foi formalmente implementado no Brasil em 2012 e consiste em dez pilares, que vão desde a organização e a preparação para a incorporação desses passos até a fase de reconstrução e reorganização de cidades afetadas em casos de catástrofes.
É preciso articulação na composição do plano estratégico de redução de riscos para que tais ações surtam efeito. Os órgãos públicos locais são normalmente os primeiros a serem acionados em casos de desastres naturais ou acidentes provocados pela ação humana. Via de regra, tais órgãos são despreparados para responderem a esses acontecimentos e poucos possuem planos consistentes de mitigação de riscos, daí a importância de planos de ação como o proposto pela ONU.
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A experiência indica que a construção de resiliência urbana depende de múltiplas intervenções em diferentes escalas e a participação pública nesse processo é fundamental. Os cidadãos devem ser instruídos, incentivados e convidados a escolherem representantes comunitários que tenham acesso às informações sobre o funcionamento e manutenção de grandes obras de infraestrutura, bem como sobre os potenciais riscos naturais que sua localidade está sujeita. Cabe aos representantes do Legislativo e aos órgãos reguladores trabalharem juntos aos agentes da sociedade civil no sentido de compartilharem informações.
Curiosamente, nenhuma das cidades afetadas pelo desastre das barragens da Samarco consta da lista do programa de cidades resilientes das Nações Unidas, ainda que o Brasil seja um dos países com o maior número de municipalidades participantes. De qualquer forma, o município de Baixo Guandu, o primeiro do Espírito Santo a ser atingido pela enxurrada contaminada do Rio Doce, merece saudação pela apagilidade para manter o abastecimento de água.
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É difícil imaginar melhoras em curto prazo quando as intervenções são falhas em todo o processo. O Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) conta com somente 20 fiscais para vistoriar as 402 barragens cadastradas no órgão e que, desses, apenas 5 têm cursos de especialização com capacitação técnica para o exercício da função. As informações são do jornalista André Trigueiro. Pior, mesmo trabalhando com estrutura aquém do necessário, seus alertas parecem não surtir efeito.
A fiscalização antes do desastre não funciona, a punição após a tragédia vai pelo mesmo caminho. Há inúmeros casos de penalidades impostas pelo Ministério Público que não foram cumpridas pelos responsáveis, que infringiram leis e que continuam atuando e/ou cometendo as mesmas infrações.
Tanto o conceito quanto as práticas referentes à resiliência das cidades são novos e as respostas são suscetíveis a nossa capacidade de implementar melhores práticas para lidar com uma variedade de crises. Mais amplamente, o movimento de resiliência urbana é uma tentativa global de abordar duas das perguntas mais pertinentes do nosso tempo: qual é o propósito da sociedade e qual é a responsabilidade de uma sociedade com seus cidadãos?
O que se vê em Minas Gerais e Espírito Santo é a prova que o Brasil não sabe essa resposta.