A discussão sobre a mudança de zoneamento dos Jardins tem sido acalorada, inclusive tomando as ruas na forma de faixas nos imóveis. Para mostrar o quão complexo tem sido o debate, conversamos com duas pessoas envolvidas com o tema dentro de suas áreas. Fizemos as mesmas perguntas para ambos, e assim cada um pode analisar os argumentos e tirar sua conclusão.

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Anthony Ling: “Já houve a transformação do caráter residencial para comercial tanto por brechas legais como na informalidade”

por Ubiratan Leal

Há demanda para comércio nos Jardins?

É o que tudo indica, pois a legislação vem praticamente regularizando o comércio que já está instalado informalmente lá. No entanto, é preciso lembrar o papel do urbanista não deve ser de tornar lei as atividades que possuem ou não demanda em uma região, mas sim criar um ambiente estável para a evolução dessas demandas ao longo do tempo, sejam elas exclusivamente residenciais ou não.

As características de bairro/cidade jardim estão preservadas atualmente?

Estão preservadas, mas não na sua totalidade, pois já houve a transformação do caráter residencial para comercial tanto através de brechas legais como na informalidade. A nova lei parece prejudicar a preservação da característica residencial ao reconhecer a mudança espontânea do caráter da região ao longo do tempo.

Você concorda com a prefeitura quando ela classifica as áreas previstas para se tornarem zonas corredor como vias de passagem?

A classificação, no meu entendimento, apenas diminui as restrições de atividades que podem ser realizadas nessas vias, abrindo o espaço necessário para a evolução das demandas de ocupação do bairro. Isso me parece positivo. Minha impressão é que, atualmente, essas ruas têm trânsito ruim em horários de pico justamente porque a região de baixo adensamento do Jardins se torna um bairro de “atalho” para escapar do trânsito das vias principais. Isso mostra como é necessário pensar no trânsito da cidade como um todo, não apenas de um bairro. Ao permitir a ocorrência de um adensamento ou do surgimento de novas atividades, mais adequadas à demanda para a região, a tendência é diminuir nesta região a distância dos deslocamentos já que elas estarão posicionadas mais próximas dos seus usuários. Essa característica contribui para a melhoria do trânsito da cidade de várias formas: incentivando o deslocamento a pé e, assim, a acessibilidade ao transporte coletivo, e diminuindo o deslocamento das viagens de automóvel.

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A revisão da lei de zoneamento como está sendo discutida agora traria quais benefícios para os Jardins e para a cidade?

Depende do que você considera “os Jardins” e qual a preferência de cada cidadão. Alguns moradores do Jardins serão beneficiados por fatores positivos como a proximidade à serviços e amenidades, que pode gerar tanto benefícios em transporte como na segurança pública e no estilo de vida dessas pessoas. Entendo que muitos terrenos vão valorizar pelo aumento de possibilidades sobre eles, o que beneficiará estes proprietários. Comerciantes do bairro provavelmente seriam beneficiados, já que teriam sua situação regularizada e ficariam situados em uma região de maior atratividade comercial – mais clientela. Os futuros ocupantes do bairro também provavelmente seriam beneficiados, já que estariam mostrando, de fato, sua preferência ao se mudarem para a região após as transformações. Para a cidade como um todo me parece positivo, pois permite – e, veja bem, não obriga – que o bairro se transforme de acordo com demandas mais atuais.

E quais problemas ela traria para os Jardins e para a cidade?

É possível prever que muitos moradores atuais que têm uma preferência mais estrita pelo silêncio e pelo caráter residencial do bairro serão prejudicados. Por este mesmo motivo é possível que alguns terrenos desvalorizem, pelo menos em primeiro momento, mas que eu imagino que seja revertido à medida que as características da região sejam transformadas de fato. É evidente que estes moradores fazem parte da cidade e, nesse sentido, teremos este prejuízo para a cidade.

Anthony Ling é arquiteto e urbanista pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor geral do site Caos Planejado. Trabalhou no escritório Isay Weinfeld e atualmente é gestor de projeto no Instituto Ling.  É pesquisador independente em urbanismo desde 2010, quando lançou o site Rendering Freedom, desde então ministrando aulas e palestras sobre mobilidade e forma urbana

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Joca Levy: “A supressão da cobertura vegetal é um problema para a cidade em geral e não apenas para os bairros verdes”

por Camila Montagner

Há demanda para comércio nos Jardins?

Entre os moradores eu não vi nenhum demandando. O que tem são os proprietários de imóvel, que são dois tipos que se passam por morador para pleitear: o cara que é dono do imóvel, mas não quer morar aqui e prefere alugar ou vender o imóvel, e tem o sujeito que está usando o imóvel irregularmente e se passa por morador. Mesmo assim, é uma meia dúzia de pessoas que fazem isso. Ou seja, entre moradores o pleito é unânime para não mexer, não aumentar os usos. Está super saturado de comércio e serviço, o que eu quiser a pé ou em dez minutos eu consigo chegar. Isso é uma realidade para uma boa parte da região da subprefeitura de Pinheiros. Nas ZERs [zonas exclusivamente residenciais] localizadas na subprefeitura de Pinheiros, dez minutos a pé você chega onde você quer.

As características de bairro/cidade jardim estão preservadas atualmente?

Não estão completamente preservadas, elas estão preservadas na medida do possível, mas o trabalho que a CET [Companhia de Engenharia de Tráfego, órgão que regula e organiza o trânsito em São Paulo] tem feito nos últimos 25 anos tem prejudicado bastante, tem deteriorado bastante os bairros. Nas imagens de satélite, vemos que a vegetação está sendo suprimida nos corredores onde permitiram atividades não residencial. São mais ou menos 25 anos, que a CET procura criar rotas alternativas de trânsito pelos miolos dos bairros. Vai invertendo as mãos, proibindo o estacionamento e assim vai criando rotas que não resolvem o problema do trânsito. Elas apenas dão a sensação para as pessoas que circulam pelos bairros que elas estão furando fila, mas os gargalos continuam nos mesmos lugares que são as pontes, avenidas. Isso prejudica as caraterísticas originais do bairro, porque o trânsito acaba criando um pleito ilegítimo para que se transforme a rua em comercial. O trânsito por si só ele não deteriora, mas ele leva ao interesse de transformar as áreas em comercial. O uso é que deteriora, o uso comercial e de serviços é que deteriora o bairro, a rua. A CET aumenta o fluxo, o aumento do fluxo torna mais interessante alugar ou vender a casa para o comércio no lugar de morar e cria a pressão para que seja mudado o zoneamento. A nova lei nesse aspecto prejudica muito a preservação pois, de novo, onde tem atividade comercial, a vegetação é suprimida gradativamente. Basta olhar a foto do Google Earth para ver.

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Você concorda com a prefeitura quando ela classifica as áreas previstas para se tornarem zonas corredor como vias de passagem?

De fato, esses corredores que estão previstos são vias de passagem na prática. Rua Colômbia e avenida Europa são vias de passagem, a Gabriel Monteiro da Silva não é necessariamente via de passagem, mas tornou-se. O fato de ser via de passagem não prejudica a via como local de moradia, apenas torna mais interessante economicamente para o proprietário explorar comercialmente aquela casa. É sempre muito prejudicial aumentar o fluxo de trânsito, ele continua aumentando sempre, não apenas nessas vias corredores, mas nas ruas internas das ZERs que a CET vai devagarinho desviando o fluxo de trânsito. Há vias que não são internas às ZERs e que já estão com problema de trânsito. Caso da rua Alemanha,  o fluxo criado pela rua Guadalupe, Polônia e Itália. É uma rota que a CET criou. A rua Veneza também. Nenhuma dessas ruas é corredor, mas elas têm trânsito intenso.

A revisão da lei de zoneamento como está sendo discutida agora traria quais benefícios para os Jardins e para a cidade?

Olha, eu estou procurando pensar que benefícios ela traria para os Jardins e não me ocorre nenhum. Eu estou falando não só dos Jardins Paulistano, Europa, América, mas dos bairros-jardins, bairros verdes em geral que estão sendo deteriorados gradativamente e vão sofrer um grande salto de deterioração com essa lei se ela passar como está. Em algumas regiões ela certamente trará benefícios, há muitas regiões onde as ZERs precisam de mais atividade comercial e de serviços. Essas regiões mais periféricas serão beneficiadas e é bom que seja assim. O nó dessa lei é que ela está querendo tratar todas essas ZERs, com diferentes necessidades, da mesma forma. Certamente há zonas que serão beneficiadas com essa revisão, lugares onde o morador está distante do seu lugar de consumo. Eu ouvi que o pessoal de Perus, por exemplo, criou um movimento para diversificar as atividades econômicas lá. Todas as ZERs em periferia se beneficiariam com o aumento da atividade econômica em geral porque aproximaria o emprego do morador. Da maneira como está sendo feito esse projeto, a atividade econômica será atraída principalmente para a região da subprefeitura de Pinheiros, então essas pessoas que moram nas ZERs periféricas vêm trabalhar aqui. Isso em Perus, M’Boi Mirim, Itaquera, todos esses lugares têm ZERs que se beneficiariam desse aspecto de ter maior geração de emprego lá se não estivesse se estimulando isso nas zonas mais centrais.

E quais problemas ela traria para os Jardins e para a cidade?

O grande problema é esse da deterioração da vegetação, das vias, da qualidade de vida. Algumas atividades que estão previstas na nova lei e que hoje não estão permitidas, como restaurantes, bares, baladas, locais de evento e casas de culto, teriam permissão para comércio de alimentação para consumo local. A sujeira que vem com isso, a deterioração que vem com o movimento de carga e descarga desses lugares e a colonização de ratos é uma coisa que as pessoas não estão imaginando o tamanho do dano que isso vai trazer. A supressão da cobertura vegetal é um problema para a cidade em geral e não apenas para os bairros verdes. Examinando o atlas vegetal da cidade, você percebe que onde tem cobertura vegetal tem mais qualidade do ar e tem a temperatura muito mais baixa que ajuda a temperar a cidade inteira.

Joca Levy é sócio do escritório Levy & Salomão Advogados e representante do movimento Ame Seu Bairro, que surgiu durante as audiências públicas que discutiram a revisão da lei de zoneamento de São Paulo em oposição à expansão dos usos permitidos na região dos Jardins