O que é? A extensa rede de ciclovias seguras e de alta qualidade de Amsterdã é um dos motivos que levam  63% de seus habitantes a pedalarem diariamente. Mas nem sempre foi assim: a maior parte da malha ciclística foi construída a partir de meados dos anos 1970. São Paulo, que está apenas começando a se tornar uma cidade mais pedalável, por incrível que pareça, também está colocando na rua um plano que não é tão recente assim. O processo de implementação dessas estruturas na capital holandesa nos diz muito sobre como as bicicletas foram ganhando, aos poucos, mais espaço na paisagem urbana e se tornaram tão populares entre os seus moradores. Danilo Cersosimo olha para o passado dessas duas cidades e mostra o que está em jogo quando as ciclovias começam, de fato, a fazer parte da estrutura viária.

A transição entre um pé no pedal e um pé na embreagem   

O uso predominante de bicicletas como meio de transporte em Amsterdã já era uma realidade antes da Segunda Guerra Mundial. A partir da década de 50, em função do aumento da popularidade do automóvel e da relevância da indústria automobilística na reconstrução de algumas economias, o uso desse modal passa a decair consideravelmente. Esse fenômeno, em maior ou menor escala, se deu em outros países, como já vimos em outro texto aqui no Outra Cidade.

Bicicletário da estação de metrô em Amsterdã (foto: Danilo Cersosimo)

Bicicletário da estação de metrô em Amsterdã (foto: Danilo Cersosimo)

É difícil olhar para Amsterdã hoje em dia e pensar que nos anos 50 e 60 as bicicletas eram vistas como algo do passado… por conta disso, durante esse período, pouco ou nada foi feito em termos de infraestrutura cicloviária na Holanda. Era um fenômeno comum da época. Assim como na Inglaterra e nos Estados Unidos do pós-guerra, as grandes cidades escandinavas também estavam crescendo em direção aos subúrbios. No mesmo período, as metrópoles brasileiras inchavam suas periferias desordenadamente. O perímetro urbano foi alargado e, para vencer distâncias maiores, mais carros passaram a circular nas ruas.

Ainda que o número de bicicletas circulando tivesse caído consideravelmente após a Segunda Guerra, sua presença ainda era relativamente alta nas ruas da Escandinávia por conta da forte herança cultural do pré-guerra. Na Holanda, estima-se que a incidência do uso de bicicletas como meio de transporte nunca esteve abaixo de 20%, nem mesmo nos anos 50/60 quando esteve fora da moda – só para efeito de comparação, na cidade de São Paulo hoje estima-se que 3% da população use a bicicleta como modal de transporte diariamente, segundo pesquisa da Rede Nossa São Paulo/Fecomercio divulgada há duas semanas.

Quando as coisas não saíram como o planejado em Amsterdã

A história das ciclovias em Amsterdã e sua cultura ciclística são um bom exemplo da disputa pelo espaço urbano e de como tal espaço é impactado por influências econômicas, sociais e culturais. No momento em que o tráfego da cidade estava se tornando cada vez mais motorizado, seu plano de desenvolvimento fortemente voltado para viabilizar o trânsito do crescente número de automóveis sofreu pressões internas e externas – o que resultou numa mudança de estratégia.

Em 1971, estima-se que em torno de 3.300 pessoas (aproximadamente 400 delas crianças) tenham morrido por acidente de trânsito na Holanda. Tal cenário fez eclodir uma onda de protestos pelas ruas de Amsterdã, através do movimento “Stop Kindermoord” (Parem com a morte de crianças), que mais tarde se tornaria uma espécie de parceiro do governo holandês na formulação e proposição de políticas públicas em mobilidade e segurança viária.

A crise do petróleo, no início dos anos 70, também pressionou os governantes a melhorarem a infraestrutura cicloviária e priorizarem alternativas mais sustentáveis de transporte. Iniciativas como o “domingo sem carro” foram uma maneira de minimizar os efeitos da escassez de combustível que acabou servindo para reaproximar os cidadãos da experiência de conviver com as ruas livres do tráfego motorizado.

Foi nesse contexto que os holandeses voltaram a contemplar a bicicleta em seu planejamento de transporte. As décadas seguintes em Amsterdã testemunharam a gradativa implementação de ciclovias e a mudança cultural que passou a tratar o pedalar e o caminhar com o mesmo respeito dado ao dirigir. O espaço urbano foi redistribuído de acordo com essas mudanças, combinando os modais de transporte sempre que possível e separando-os quando necessário.

Além das ciclovias, as zonas exclusivas para pedestres também começam a ganhar força na Holanda (e em toda Escandinávia) justamente nessa época. Uma das principais inspirações para essas mudanças foi a rua Stroget de Copenhague, que deixou de receber veículos motorizados durante os finais de semana ainda em 1962, sob muitos protestos.  O local se tornou um dos maiores centros comerciais do mundo e é exclusiva para pedestres em todos os dias da semana.

A via exclusiva para pedestres Stoget, em Copenhague (foto: Danilo Cersosimo)

A via exclusiva para pedestres Stoget, em Copenhague (foto: Danilo Cersosimo)

São Paulo também tinha um plano

A chegada da indústria automobilística no Brasil ocorreu durante o governo de Juscelino Kubitschek, como parte do plano de crescimento acelerado que ficou conhecido como “50 anos em 5”. Esse aceleramento também se refletiu mais tarde no ritmo do tráfego nas ruas, com a crescente popularização dos carros durante o início dos anos 70, período do chamado “milagre econômico”.

Ironicamente, a popularização da bicicleta como meio de transporte também ocorre nessa época, mas sua massificação teve origem na classe trabalhadora exilada em locais mal servidos pelo transporte público – nas extremidades das grandes cidades brasileiras. Por conta disso, a figura da bicicleta nasce distante das camadas sociais mais influentes, sem o status que o automóvel passa então a ter, com a vinda das montadoras e proliferação dos carros associada a um momento de prosperidade para o país.

Ainda assim, os primeiros estudos para a instalação de uma infraestrutura cicloviária na cidade de São Paulo foram realizados nos anos 80 e tinham como principal função incentivar o uso da bicicleta como alternativa ao já caótico sistema de transporte público e aos congestionamentos. Além disso, a crise do petróleo que afligiu os simpáticos holandeses (e o mundo) nos anos 70 também nos assombrou e nos obrigou a pensar em alternativas aos veículos motorizados.

Este primeiro plano de ciclovias para São Paulo subdividia a cidade em 14 setores articulados entre si, visando estruturar uma rede de ciclovias para todo o município com 174 km de extensão, de acordo com estudos da CET-SP.

Ciclista em um domingo de chuva na Av. Paulista (foto: Camila Montagner)

Ciclista em um domingo de chuva na Av. Paulista (foto: Camila Montagner)

Naquele momento, São Paulo já era uma cidade remendada e com deformações tanto no seu traçado quanto no seu planejamento urbano, mas ainda assim oferecia condições para implementação de uma estrutura cicloviária ampla. Isso porque era nesse momento que as muitas ruas e avenidas estavam surgindo, e outras tantas se encontravam em fase de ampliação. Poderíamos ter aproveitado as obras que estavam em curso para colocar em prática um plano que já estava traçado no papel. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à malha metroviária que, assim como as ciclovias, não evoluiu conforme o planejado (e muito menos conforme o necessário).

Para enxergar a solução é preciso compreender o problema

Em 1990 foi promulgada a Lei Municipal 10.907/90, que propunha a construção de ciclovias em novas avenidas. De lá pra cá, o que se viu foi um conjunto de leis, estudos, projetos e iniciativas isoladas, que timidamente circularam em diferentes secretarias, de diferentes órgãos municipais, de diferentes gestões e de diferentes partidos.

Há 30 anos, as limitações do modelo viário adotado na cidade foram identificadas. E, como vimos, também chegamos a pensar uma solução para elas. Para se ter uma ideia da dimensão atual do problema, o paulistano passa, em média, 2h46 por dia no trânsito da cidade. Ciclovias não resolverão isso por si só. Nem em São Paulo, nem em lugar nenhum do mundo. Mas elas podem ser um trecho do caminho que nos leva a melhores condições de mobilidade.

A cidade de São Paulo possui hoje 356,8 quilômetros de infraestrutura cicloviária permanente e  a meta é atingir 400 quilômetros. Apesar das controvérsias e falhas pontuais de concepção e ainda que somente 3% dos paulistanos utilizem a bicicleta diariamente para ir estudar ou trabalhar, a tendência é que esse hábito fique cada vez mais arraigado entre os cidadãos.

A experiência dos holandeses nos ensina que é preciso ver as ciclovias como (parte da) solução de um problema e não como empecilho. Infraestrutura gera demanda. “Construa e eles virão”.