Rita Mourão aponta para cada obra de arte e conta uma história, mas não está satisfeita. Ela esqueceu as chaves do seu quarto, onde ela não mora, mas reserva para conviver com as suas coisas. Testa outras chaves na porta, que ela trancou porque alguns itens estão em seus cuidados mas não lhe pertencem, mas nenhuma abre. Devolve as chaves de volta de onde pegou, porque o apartamento que abriga o DesapÊ – nome que ela deu ao espaço – é compartilhado, e outros podem precisar para fechar as portas dos outros três quartos. Apenas um deles está ocupado por uma pesquisadora de arte, que planeja começar seu doutorado ano que vem e foi quem avisou a colecionadora que havia um dormitório vago que ela poderia ocupar.

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Estamos na residência paulistana da Capacete, programa que abriga artistas e pesquisadores e tem sede no Rio de Janeiro. Há dois meses ele também passou a ser o endereço onde Rita recebe quem quiser conhecer seu acervo, quase todo à venda, exceto por um cartaz da “Não Exposição”, de Nelson Leirner, do qual não abre mão. Ela defende que nada impede que uma galeria seja também uma casa, pois o lugar do artista não é longe da vida. Quem visita sua “descoleção” também pode perfeitamente encontrar alguém cozinhando ou fazendo as unhas, por acaso. A escolha do prédio, no entanto, é proposital. Antes instalada no Bretagne, edifício no bairro de Higienópolis concebido por Artacho Jurado, ela acredita que a arquitetura é um motivo a mais para que as pessoas a procurem

O que a trouxe para o Copan?

Eu fui convidada para estar aqui, aí vim correndo. Eu entendo que o meu projeto funciona nesses prédios icônicos, porque aí a pessoa quer me conhecer não porque eu seja interessante ou sei lá o quê, mas quer conhecer o apartamento, o prédio. Todo mundo tem essa curiosidade. Óbvio que é mais interessante do que se eu morasse em qualquer prédio, então esse projeto depende muito desses edifícios emblemáticos. E esse é o top. Aliás, esse aqui é difícil que eu desapegue daqui porque eu vi que aqui é o meu lugar. É super democrático, não tem nada a ver com o [edifício] Bretagne. Originalmente o DesapÊ era lá, em um prédio que se prestava para isso, porque existia esse casamento entre arte e arquitetura. Era no meu apartamento, eu morando, minha filha morando – algo que era para compartilhar, democratizar e conviver com pessoas que tinham esse interesse. O Bretagne é muito pomposo, já virou um prédio, quer dizer, já nasceu super burguês. Mas daí ele foi se perdendo um pouco. Era maravilhoso morar lá, é incrível, tem um bar, tem sala de ping pong, sala do piano. Eu aproveitei pra caramba a sala do piano, levei vários artistas para se apresentar lá. Tinha um jardim suspenso que só fechava à noite. Era maravilhoso. Aqui tem os horários [para visitar a cobertura] e é meio laje, mesmo. Mas tem mais a ver comigo.

Então por que não veio morar aqui [no Copan]?

Só trouxe o DesapÊ pra cá porque eu ainda não pude me mudar. Acho que isso ainda vai acontecer, mas eu vim com esse propósito de estar com a coleção aqui e estou morando com a minha mãe em Higienópolis, mas não no Bretagne. Não tinha como continuar com a coleção na casa da minha mãe porque eu não teria como conviver com a minha coleção, e esse convívio é importante para mim. Até porque a ideia da descoleção é de democratizar, trazer mais pessoas para que elas se aproximem da arte.

Rita manuseia suas edições raras de poesia concreta (Camila Montagner/Outra Cidade)

Rita manuseia suas edições raras de poesia concreta (Camila Montagner/Outra Cidade)

Você disse que dificilmente vai se desapegar desse lugar que você tem agora, mas você tem desapego com a sua coleção, por exemplo?

Sim, exato. A coleção é para compartilhar, para dividir. E aqui tem muitos apartamentos, tem tudo. A sorte é que no Copan tem 1.160 unidades, então eu vou ter muito lugar para ir por aqui. Vou sair desse, ir para uma quitinete, de uma quitinete para um maior que esse, não vou ter esse tipo de problema, espero. É isso, não quero sair daqui porque eu achei que é muito democrático, é divertido estar aqui, a gente tem tudo. Padaria, restaurante, lavanderia, fora a Pivô.

O público que você recebe aqui é mais ou menos o mesmo que você recebia no Bretagne?

Acho que melhorou no sentido que está mais aberto às pessoas, porque tem pouca coisa. A pessoa vem na Pivô e aproveita. Você sabe que no centro tem pouca coisa, em Higienópolis menos ainda, era muito bairro. Aqui ainda tem a Maria, a galeria Sé, o coletivo Aurora.

Algum morador já veio visitar sua “descoleção”?

Eu não sei até onde isso é divulgado, mas existe um grupo meio secreto, que a gente chama de Copan Sisterhood, com mulheres, homens e trans. Nós nos ajudamos, tem vizinho que pede ferro de passar roupa e meu iPhone mesmo, eu comprei de uma vizinha. É um grupo que se protege, porque existe essa política de, como tem muita gente, ser uma coisa um pouco careta. A gente se conhece, são as pessoas do prédio que têm interesses afins e trocamos essas ideias. Sempre aviso lá quando tem exposição.

Você vê alguma relação entre a arquitetura do Artacho Jurado e o Niemeyer?

Faltavam essas referências acadêmicas para o Artacho Jurado, ele não era nem arquiteto, nem engenheiro, era um artista. A ideia dele era você ter um espaço muito carregado de elementos supérfluos, decorativos, todos os materiais, pastilha, mármore, estuque, todas as cores. O Artacho Jurado é o Walt Disney da arquitetura. O Copan essas curvas, essa coisa sinuosa dele, eu acho que tem uma coisa lúdica.

O apartamento também é o endereço paulistano da Capacete (Camila Montagner/Outra Cidade)

O apartamento também é o endereço paulistano da Capacete (Camila Montagner/Outra Cidade)

Você tem uma peça preferida, ou um poema preferido?

Tenho um cartaz de exposição do Nelson Leirner da Não Exposição. Esse cartaz eu não desapego. Ele diz entre, pare, olhe e pegue. Não é pague, compre. Ele tinha as obras presas com cadeados, não dava para pegar. Mas pessoas iam com martelo, serrote e acabavam tirando as obras da exposição e saíam com elas. Foi uma exposição bem maluca. Ele foi meu professor, então esse é o que eu tenho um carinho muito grande. Mas é isso, as outras coisas eu não lembro de alguém ter perguntado “e esse quanto é?” e eu ter respondido “esse não é, não desapego”. São poucas coisas, de repente pode aparecer mais algumas, mas é bem pouco. A função é essa, está aberta para isso. Essa ideia de desconstruir a aura da arte é o que realmente me atrai e desacervo, descoleção, DesapÊ porque a minha ideia é desconstruir a posição do artista, o lugar da galeria na sociedade. Não tem esse lugar, esse lugar pode ser sua casa. O artista pode ser você. Tem um colecionador que refazia obras, porque são peças incríveis que ele sabe que ele nunca vai poder comprar. E ele abriu o apartamento dele para o público através do museu de Belo Horizonte. O museu soube e pediu formalmente para abrir, você pegava a chave no museu e ia até a casa dele. É por aí. Eu tinha uma bandejinha de tomate furadinha que eu dizia que era uma obra do Lucio Fontana e a pessoa perguntava “É Lucio Fontana?”. Meu deus do céu, como pode ser Lucio Fontana, uma bandeja de tomate. Existe uma provocação também, nisso, para nós brincarmos um pouco com a arte. É interessante provocar esse interesse.

Quantas pessoas você já recebeu aqui?

Eu abri no mesmo dia da [abertura da exposição da] Erika Verzutti na Pivô, o que foi super pretencioso da minha parte. Só no dia da abertura recebi umas 30 pessoas. No total acho que umas 60. Esse dia eu fiquei aqui, só fui até lá quando a exposição chegou no final, para ver como estava. As pessoas ficaram sabendo pelas redes sociais, porque eu avisei que estaria com o meu desacervo exposto. Esse acervo, que está sempre à disposição dos outros, já saiu para uma exposição formal em um espaço experimental que chamava Tofiq House, uma residência artística. Fizemos uma exposição lá que chamava desesposição. Teve uma curadoria e foi levado tudo do meu apartamento. Acho que, entra as pessoas que já conheceram a minha descoleção direta ou indiretamente, foi muita gente, porque já saiu até de casa. Essa exposição foi mais próxima de uma exposição tradicional, porque foi aberta em um espaço que era público, a ideia é estar sempre trabalhando com essa contaminação do público no privado, do privado no público. Tem dia que você chega aqui que tem gente cozinhando, gente aqui na sala fazendo a unha. E eu garanto que não é uma performance. É muito espontâneo. A gente tem uma casa que está convivendo com arte e está convivendo com esse valor que eu não sei se é o valor da aceitação, o valor do conhecimento.

O Capacete já recebia gente aqui?

Sim, os artistas ficam aqui, mas produzem em outro lugar. Artistas da Pivô já ficaram aqui e produziram lá embaixo. Eles podem chamar pessoas aqui, fazer uma exposição experimental, mas eu não sei quantas exposições rolaram aqui dentro. Eu sei que eles dão festas para os amigos. A temporada deles normalmente é dois meses, três meses. Eu pretendo continuar com isso, estar com os artistas aqui. Com pesquisadoras também vai ser interessante, elas podem fazer exercícios curatoriais aqui. O Capacete é um projeto bem antigo, de 1998, são eles convidam os residentes.

Rita recebe em casa colecionadores e interessados em conhecer a sua coleção há 5 anos (Camila Montagner/Outra CIdade)

Rita recebe em casa colecionadores e interessados em conhecer a sua coleção há 5 anos (Camila Montagner/Outra CIdade)

Você já recebia desde essa época?

Eu venho montando o meu acervo desde que eu era estudante na Faap, os recursos eram outros. Eram mais coisas que eu trocava com artistas, alguma coisa que eu ganhava, e depois na Itália eu trabalhei nessa revista. Comecei a receber as pessoas no Bretagne há cinco anos. Na verdade eu fiz Faap, fui morar por 13 anos na Itália, passei oito em Florianópolis e depois morei em Buenos Aires. Tive uma vida bem nômade e as minhas coisas eram as minhas coisas. Nas mudanças eram caixas e caixas. Eu ficava “meu Deus, preciso ser menos apegada às coisas”. Quando cheguei no Bretagne, vi realmente que o Bretagne tinha que ser compartilhado. Naquele prédio não poderia viver assim: eu, minha filha, meu acervo. Eu tinha que chamar as pessoas para visitar e também já podia começar a abrir esse acervo para outras pessoas. Começou um pouco assim. Entrei mais ou menos para essa categoria, que eu nem queria, de colecionadora. Eu insisto em ser descolecionadora.

Como é a convivência com as pessoas da casa?

Estou aqui há pouco tempo, mas as pessoas que estavam aqui acharam muito interessante o que eu trouxe para o apartamento. Marquei uma data de abertura para a exposição e a Giovanna Pizzoferrato, de Los Angeles, perguntou se poderia colocar as coisas dela lá no quarto e deixar aberto. Eu dei a maior força. Ela arrumou o quarto dela e eu achei o trabalho dela incrível e fiquei com coisas dela para vender. Nesse dia, ela vendeu uma obra para um casal de amigos italianos. Já a Patrícia Matz, que também morava aqui, tinha um amigo que é artista e perguntou se poderia colocar o trabalho dele no quarto dela. Eu falei que sim, vamos abrir a casa para quem quiser, a ideia é essa.  A Patrícia, por exemplo, achou um pouco estranho – ela não tinha a chave do dormitório dela e eu fui fazer pra o meu porque no meu acervo tem coisas que não são nem minhas. Ela perguntou se eu ia ficar aqui o tempo todo na exposição, se vinha muita gente. “Eu não sei”, respondi. Ela falou que tinha um pouco de medo, por causa das coisas dela. Eu me ofereci para fazer a chave para o quarto dela também, e fiz. Aí ela ficou conhecendo como funcionava e sugeriu que o trabalho do amigo ficasse exposto.

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Você não teve nenhum problema com a administração do prédio?

Na verdade, as pessoas vêm para me ver, conhecer o projeto que é a minha coleção. Não tem horário comercial, não tem uma proposta comercial. Tem uma proposta de compartilhar arte. É como se alguém quisesse comprar uma roupa usada minha. Então não é um comércio aberto para todo mundo. Existe um mínimo, que é uma rede de relacionamentos. As pessoas chegam na minha rede porque são amigos de amigos. Se você quiser vir, ótimo, eu estarei aqui, vou te esperar. E os horários que as pessoas vêm são esses: podem vir à noite, aos domingos, porque estarei aqui. Não moro aqui porque eu tenho que morar com a minha mãe nesse momento, mas, se eu não tivesse que ajudar minha mãe, ficaria tranquilamente aqui.

Obra da artista Giovanna Pizzoferrato, que também morava no apartamento (Camila Montagner/Outra Cidade)

Obra da artista Giovanna Pizzoferrato, que também morava no apartamento (Camila Montagner/Outra Cidade)

Qual a diferença entre morar no Copan e no Bretagne?

O Copan é muito maior, quer dizer, não conheço mais ninguém aqui. Mas existem abrigos, você reconhece um ou outro. Aqui embaixo as pessoas levam os cachorros para passear, fica todo mundo sentado na calçada uma certa hora. É a praia de São Paulo. O Niemeyer conseguiu trazer a praia para São Paulo. Você identifica um ou outro morador, eu tenho uns amigos que trabalham aqui. Já o Bretagne nasceu para ser uma coisa metida, era uma coisa muito burguesa. O menor aparamento era de 80 m². E se já era assim, agora tudo está sendo vendido a preços altíssimos. Ele vem com uma pegada que não tem nada a ver com o Niemeyer. Aqui é democrático, tem muito mais a ver com o DesapÊ. Eu sei que a administração é muito rígida, mas é natural. Você encontra casos que já saiu na imprensa de um casal que estava transando nas escadas e foi multado. É muita gente para administrar. Mas é melhor, porque tem de tudo. É uma selva de concreto, mas é muito mais coerente. É essa a complexidade que a gente vê na rua e a gente vê aqui também.

Você não sente falta de alguma coisa que tinha lá?

Pois é, aqui a gente está no concretão mesmo, não tem. Tem a praça da República e, se eu quiser um verdinho, é só lá mesmo. Eu brinco aqui o nome é Copabacana Palace, Copan Bacana Palace. Isso não tem, aliás tem muito concreto.