O estado de São Paulo registrou a morte de 1.765 motociclistas apenas em 2015, mais que os 1.474 condutores de automóveis no mesmo período. O número já chamaria a atenção por si só, mas se torna ainda mais assustador quando comparado com o fato de que há quatro vezes mais carros circulando pelas ruas paulistas. A violência no trânsito é um problema sério no Brasil, mas as motos têm sido atingidas de modo particularmente intenso nesse universo.

Uma forma de mudar essa realidade é repensar como cada tipo de veículo se insere nas ruas e avenidas das cidades brasileiras. “A gente tem que repensar, usar essa experiência trágica e não deixar mais isso acontecer desse jeito. A gente transformou dramaticamente a vida de quase dois milhões de pessoas”, defende Eduardo Vasconcellos, doutor em Ciência Política pela USP e assessor da Associação Nacional dos Transportes Públicos, referindo-se ao número total de motociclistas mortos e feridos com base no número de indenizações pagas entre 2008 e 2015.

Eduardo lançou recentemente o livro “Risco no Trânsito, omissão e calamidade”, que retrata o impacto das motocicletas nas vidas dos brasileiros. Ele defende que a convivência de motocicletas e veículos grandes em vias onde com alto limite de velocidade é uma irresponsabilidade. Entre 2011 e 2014, o número de ocorrências fatais e não fatais trânsito brasileiro no aumentou 156%.

Falamos com Eduardo sobre o crescimento da frota de motocicletas, políticas públicas para redução de colisões envolvendo motociclistas e também sobre comportamento no trânsito. As motocicletas são “invisíveis” para grande parte dos radares, andam no ponto cego de alguns condutores de automóvel e são insignificantes em tamanho perto dos ônibus e caminhões – mas passou da hora de termos uma conversa séria sobre elas.

Você diz que não tem como as motos compartilharem vias com os carros dentro do trânsito rápido. Existe uma velocidade segura para as motos poderem usar a mesma infraestrutura dos carros?

Na verdade é perigoso o compartilhamento com todos os veículos, não é só com o carro, é também com ônibus e caminhão. O para-choque é o corpo da pessoa, a única proteção que tem é  o capacete, que evita poucos riscos. O que acontece é que a velocidade em via com compartilhamento de via entre moto, carro com muitos ônibus e caminhão não deveria passar de 30 km/h. A energia cinética que é o que determina a quantidade de risco de morte ou ferimentos em uma colisão.  Agora, se for um trânsito leve de automóveis, em bairro, por exemplo, 40 km/h já é uma velocidade plausível – mesmo se alguém se machucar, provavelmente ninguém vai morrer. Mas é um limite relativamente baixo perto do que as motocicletas querem que é andar a 70 ou 80 km/h.

VEJA TAMBÉM: Velocidade máxima no trânsito: quando menos é mais

Na avenida 9 de julho, por exemplo, há um bolsão para motocicletas e bicicletas aguardarem o sinal abrir logo antes da faixa de pedestres. Na sua opinião, isso ajuda a diminuir a vulnerabilidade do motociclista?   

Não, na verdade ajuda um pouco no sentido que se ele estivesse estacionado entre os automóveis na hora de sair ele poderia eventualmente sofrer uma colisão lateral. Porém, seria em uma velocidade baixa.  O positivo é que evita o conflito entre o pedestre e a motocicleta porque muitos pedestres são atropelados quando a moto sai muito rápido e a pessoa ainda não terminou de atravessar na faixa. Isso reduz o risco para o pedestre. Ajuda mais nesse sentido.

Eduardo Vasconcellos, assessor da ANTP (Divulgação)

Eduardo Vasconcellos, assessor da ANTP (Divulgação)

Segundo dados da CET e do Detran, as motos representam 13% da frota de veículos, mas só recebem 4% das multas da capital paulista. Melhorar a eficiência na fiscalização, uma vez que só 70% dos radares têm chance de flagrar motos que não respeitam o limite de velocidade, pode diminuir a mortalidade e as ocorrências não fatais?

Sim o problema de fiscalizar motocicleta é que muitas têm a chapa estragada ou escondida, os radares também não conseguem captar os radares, a maioria deles não conseguem captar a velocidade desses veículos. Eles não foram preparados tecnologicamente para isso, são preparados para detectar a velocidade de veículos grandes. Grande parte do motivo para ser baixo o número de multas é porque você não consegue fiscalizar, tem um problema grave de fiscalização tecnológica. Os radares-pistola ajudam, porque é o tipo de radar que consegue flagrar, ou seja, você aponta e ele consegue detectar a velocidade. Porém o custo é alto, porque precisa de uma pessoa e de uma quantidade grande de operadores para cobrir os pontos na cidade inteirinha. Ele funciona, mas é caro e também não dá para colocar um em cada ponto de São Paulo. É complicado, o ideal seria os radares automáticos registrarem motos também. Tem pouca multa porque você não consegue multar, mas se 70% [dos radares] têm chance, alguma coisa estranha está acontecendo.  Os motociclistas andam muito rápido. Eu não saberia te explicar, mas como usuário da via minha experiência é que em geral é estranho que tenha tão poucas multas. Deve ter algum fato aí no meio que não sabemos, que pode servir para explicar esse número.

Então, você não acha que as motos deveriam ser proibidas de circular nas vias expressas, mas que as vias expressas deveriam ter uma velocidade menor?

Veja bem, se for uma via expressa feita para ser expressa, que custa muito caro, tem uma geometria muito bem feita, muito generosa, aí não tem sentido botar 50 km/h. Nessa situação extrema, o ideal é que a moto não circule numa via de alta qualidade. Agora nas avenidas do trânsito urbano se você tiver um grande número de motocicletas o ideal é baixar a velocidade nas vias em geral. Mais ou menos como está acontecendo agora, já melhorou bastante. Em geral, o trânsito está mais lento e isso já reduz bastante a periculosidade. Não tem uma solução única assim: a cidade inteira a 30 km/h para as motos poderem circular. Isso não vai dar certo. Tem que ter um compromisso, às vezes é interessante separar fisicamente, cada caso é de um jeito. O que está por trás disso é a energia cinética do choque, e ela depende da velocidade e da massa. Então, em qualquer cidade do mundo reduzir a velocidade é a medida número um para aumentar a segurança. Só que tem que ser criterioso, na onde você vai reduzir. O que eu digo numa expressa como na marginal Tietê não dá para botar motocicleta, com aquele monte de caminhões, ônibus e etc. Realmente o governo tem que tomar uma decisão: ou tira os caminhões e ônibus ou as motocicletas. Deixar conviver vai causar acidentes, uma enorme quantidade de ocorrências graves envolvendo motos. O nosso corpo humano tem pouca resistência a choque e botar os caminhões todos a 30 km/h também não é bom. Então, em algumas situações tem que separar. Caso a caso, os engenheiros precisam estudar pra ver. Em geral, nos bairros todos, como reduziram a velocidade, a moto pode circular entre bairros no sentido de que não vai morrer, não vai atropelar ninguém a ponto de matar a pessoa.

LEIA TAMBÉM: Argentina aprova lei que regulamenta a profissão de motoboy

Alguma cidade conseguiu ser bem-sucedida em reduzir a mortalidade e as ocorrências não-fatais envolvendo motos?

Aqui no Brasil, por enquanto, nenhuma. O que aconteceu de redução foi nos países europeus e Japão. Assim como em qualquer processo industrial, quando tem novas tecnologias que tem impacto nas vidas das pessoas, se você não fizer o processo adequado de educação vão acontecer acidentes. Não só na mobilidade, mas imagina o botijão de gás, por exemplo, quantas cozinhas não explodiram pelo mau uso. Se não tomar cuidado o número de acidentes cresce rapidamente e só muitos anos depois começa a diminuir. Tem essa curva com um nome desagradável, que é a curva do aprendizado. A sociedade aprende a conviver, um dia vai acabar reduzindo, porque as pessoas vão tomar as atitudes. Enquanto as pessoas não tomarem uma atitude, que é o caso do Brasil, vai continuar a piorar a situação. Aqui no Brasil nem todas as cidades tem estatísticas, pode ser que exista algum caso, mas eu nunca li nada nesse sentido.

Você disse que não há motocicletas seguras, embora os fabricantes digam que elas são. Quais exigências poderiam ser feitas para os fabricantes nesse sentido?  

O conceito é o seguinte: como é que você analisa o nível de segurança de um veículo? Tem que analisar como anda no ambiente onde vai circular. A motocicleta é segura no quintal da sua casa, se você acionar o freio ela para, você vira a direção para a direita e ela vai para esse lado. Mas não é esse o conceito de segurança. Que tipo de segurança a motocicleta oferece para os usuários na 23 de maio ou em qualquer avenida de São Paulo? Zero. Veja o caso do carro, que começou como a motocicleta. O carro começou sem segurança, depois pôs cinto, trocou os vidros que quebravam em pedaços e machucavam já não são mais assim, os freios, as carrocerias foram mudadas para absorver o choque e não transferir para o pedestre em caso de atropelamento, foi todo um redesenhado para proteger os seus usuários. A motocicleta não tem nenhuma proteção no meio do trânsito onde ela vai andar. É uma falácia o fabricante dizer “eu fabrico um veículo seguro”.

Tem uma discussão sobre os carros sem motorista que eles iam reduzir o número de acidentes porque quando um outro veículo se aproxima, ele para. Você acha que ter carros autônomos circulando os acidentes vão diminuir?

Teoricamente um automóvel autônomo não cometeria alguns dos erros que o motorista cometeria: não vai ter sono distração, sono, pegar o celular, etc. Teoricamente reduziria, mas ninguém provou que na prática, com um monte de veículos ao redor, ele vai circular bem. Depende ainda de uma análise. É o mesmo caso da motocicleta. Ainda temos que ver o que vai acontecer com os carros autônomos no meio de um monte de outros carros autônomos e normais.