Uma reforma escolar que envolve 311 mil alunos. O objetivo era separar os alunos por faixa etária, de modo que cada escola receba estudantes de um único ciclo de ensino – fundamental 1, fundamental 2 ou ensino médio – o que implicaria no fechamento de 93 escolas, 25 delas na cidade de São Paulo. A reorganização da rede estadual de ensino foi suspensa na semana passada, mas já deixou de ser apenas um tema educacional. Virou um debate da cidade.

Estudantes ocuparam escolas e fecharam ruas para se manifestar, enfrentando a polícia em vários momentos, instituições de ensino criticaram a decisão do governo, que acabou recuando e até demitiu o secretário de educação. A sociedade se envolveu, e faz sentido se considerarmos o que representa o ensino público e as mudanças propostas em diversas comunidades. Afinal, tem a ver com deslocamentos de pais e alunos e com o papel que as escolas exercem dentro de seu bairro.

Só aqui no Outra Cidade já falamos de dois casos. Primeiro, a escola Renata Menezes dos Santos que serviu de incubadora para as atividades dos Escritureiros, um grupo de jovens que busca incentivar a leitura no bairro de Parelheiros. O segundo caso que abordamos foi dos Centros Educacionais Unificados (CEUs) que representam, ao lado dos CICs, uma opção de atividades esportivas e culturais para a população das regiões de alta vulnerabilidade.

Para falar sobre a importância das escolas em suas comunidades e o impacto da proposta de reestruturação da rede estadual, conversamos com Júlio Neres, técnico do Núcleo de Educação Integral do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação e Ação Comunitária (Cenpec) e mestre em educação pela USP. O Cenpec acompanha as discussões sobre políticas públicas de ensino e já publicou estudos sobre a relação entre desigualdade escolar e as disparidades sociais do território na região do entorno. O posicionamento da organização a respeito da reforma escolar inclui ressalvas a respeito da insegurança familiar que seria gerada pela transferência de alunos e profissionais da educação de uma escola para outra, além do rompimento da trajetória escolar e as possíveis complicações nos deslocamentos diários dos estudantes.

Julio Neres, do Cenpec (Reprodução)

Julio Neres, do Cenpec (Reprodução)

Foi anunciada a distância máxima de 1,5 km entre a escola que será fechada e a escola que receberá os estudantes, mas no pronunciamento do Cenpec foi declarado que não é suficiente estabelecer esse limite. Como vocês chegaram a essa conclusão?

O que o Cenpec está questionando é que, na cidade de São Paulo, isso não faz muito sentido. Essa distância máxima de 1,5 km em São Paulo tem uma dimensão de deslocamento que pode ser muito maior. Não é suficiente, isso não dá conta de definir a mobilidade das crianças que teriam que se deslocar com essa reestruturação. Outra questão é que o governo suspendeu a reorganização, eu não sei como vai ficar, se ela será retomada depois disso. A proposta do governo é conversar por escola agora, a princípio é essa a discussão atual.

Outro ponto do manifesto contra a reforma é a quebra de vínculo afetivo entre professores e alunos e funcionários. Você acredita que a escola é importante para a formação de um senso de comunidade dos alunos com as regiões do entorno?

Ela é essencial, em alguns lugares ela é o único equipamento público que funciona ali: tem espaços de saúde, uma delegacia e a escola. A escola é o único centro de referência para aquela comunidade. Em alguns bairros, escolas são emprestadas para casamentos e outras atividades. E nós defendemos que as escolas rompam os seus muros e tenham uma relação com a comunidade. A escola é um centro irradiador de relações com o território, com os saberes do território onde há manifestações das quais os alunos participam e a escola desconsidera. Quando a escola se abre, aprende com esses saberes e eles passam a fazer parte do cotidiano escolar. Tem saberes que estão lá há muito tempo, as crianças vivem com isso no seu cotidiano, mas quando elas entram na escola é para falar de outra coisa. Aí o que elas ouvem não se vincula à vida concreta e a escola perde o sentido para essas crianças.

Um trecho do pronunciamento diz que, nas áreas de vulnerabilidade, “estudos do Cenpec indicam que nesses locais, principalmente as mães, já empreendem grandes esforços para assegurar a educação de seus filhos”. Vocês apuraram quantas dessas escolas que serão fechadas estão em área de alta vulnerabilidade?

Nós não fizemos essa pesquisa, até porque essa reestruturação foi feita de supetão. De repente estamos falando de mais de 300 mil alunos seriam impactados e mais de 90 escolas parariam de funcionar. Elas estão espalhadas por diferentes regiões. Nós não estudamos porque faz pouco tempo que foi anunciada a reforma e a divulgação da relação das escolas que seriam fechadas é ainda mais recente. A gente não tem esse estudo, mas sabemos que as escolas são fundamentais nessas regiões. No estudo que você está citando, de São Miguel Paulista, na região do Itaim e Jardim Helena, a gente ouviu as mães e viu que tem aquela disputa por vaga na escola mais conceituada do bairro. Obviamente se escolas em lugares vulneráveis forem fechadas, isso implica deslocamento dos pais e significa cortar essa possibilidade de acesso. Já não é fácil agora, também precisamos considerar que 1,5 km de distância é relativo para os pais. Você pode estar a 1,5 km da escola, mas precisa fazer um esforço enorme para chegar até ela numa cidade como São Paulo. A gente não tem a medida desse impacto. Cortar uma escola em um determinado bairro vulnerável pode ter um impacto profundo nas relações de acesso e possibilidades desses meninos e meninas.

Estudantes em manifestação contra a reforma escolar na av. Brigadeiro Faria Lima (Camila Montagner/Outra Cidade)

Estudantes em manifestação contra a reforma escolar na av. Brigadeiro Faria Lima (Camila Montagner/Outra Cidade)

Quando o manifesto diz que a mudança pode causar insegurança nas famílias em situação de vulnerabilidade, vocês dizem isso em relação ao custo do transporte, ao esforço de adaptação das crianças ou aos dois?

As duas coisas juntas. Se as famílias estão em situação de alta vulnerabilidade, qualquer esforço adicional gera impacto. Outra questão são os meninos que estão em determinada escola e precisam sair dessa escola onde eles criaram vínculos. As trajetórias serão rompidas. Obviamente que em uma família vulnerável qualquer gasto adicional vai impactar na despesa dessa família. Eu estou falando de ordem de grandeza muito diferente de uma classe média. A família que mora no Jardim Lapena, é perto de um braço de rio onde há enchentes constantes, o deslocamento é difícil. Atravessar a ponte para chegar do outro lado do rio ou ter que pegar uma condução tem um impacto muito grande na organização da própria família e nos laços afetivos das crianças com as escolas que elas frequentam.

Qual a importância da escola como equipamento público dentro da comunidade? Qual seria o impacto do fechamento dessas escolas no entorno?

Em alguns lugares a escola é o único equipamento público que funciona o tempo inteiro, é uma política que chega a essas famílias. Das políticas públicas universalizantes que temos, saúde com o SUS e a escola pública, a escola é a que chega em todos os lugares. A verdade é que precisa ter mais equipamentos públicos, não fechar escolas. Precisa de polo cultural, centro esportivo, esses equipamentos que são mal distribuídos. Na região central tem museu, cinema, teatro, equipamentos esportivos e na periferia ou regiões vulneráveis tem a escola, um posto de saúde e olha lá. É uma política pública que tem capilaridade, que chega de fato a essas regiões e fechar isso implica em um impacto muito grande na vida das pessoas.

Quais teriam sido as sugestões do Cenpec em uma eventual discussão da reforma escolar?

Primeiro é preciso criar fóruns de discussão, ouvir os alunos e ouvir as famílias. Ouvir de verdade, não ouvir para manter a reestruturação. Ouvir e construir alternativas. E incluir os professores, porque, quando uma escola é tirada lugar ou ela para de funcionar, o professor terá que cumprir sua carga horária em outro lugar. O governo disse que diminuiu o número de matrículas nos últimos anos, houve diminuição na taxa de natalidade e migração de alunos para outras redes, mas não disse o que isso significa. Não houve um estudo concreto dizendo que a qualidade da educação vai melhorar, isso não está na proposta. O que a gente acredita? Qual a alternativa? Estão fazendo isso para diminuir o custo do governo ou melhorar a qualidade? Se for para diminuir o custo, essa reestruturação talvez tenha sentido, mas do ponto de vista da qualidade da educação não tem. Não basta o “olha, vamos cortar as escolar porque vai diminuir o custo”. Tudo bem, mas isso vai melhorar a qualidade? E, se não vai melhorar a qualidade da educação, a condição de trabalho dos professores vai melhorar?

Na sua visão seria ideal uma reforma específica para cada escola ou a educação precisa mesmo passar por uma reformulação geral?

A educação de São Paulo precisa melhorar muito, melhorar as estruturas de atendimento, melhorar plano de carreira dos professores – uma reforma que vai mexer com 300 mil alunos e não sei quantos professores e não há nenhuma discussão sobre como isso impacta na vida desses trabalhadores. Precisa pensar como isso impacta na qualidade de aprendizagem desses alunos. Precisa, não sei se de uma reformulação, mas de um projeto que pense na qualidade e não num benefício estritamente econômico para diminuir custo sem falar com ninguém. É preciso pensar a partir dos indicadores de qualidade, número de alunos na sala, carreiras dos professores e estruturas das escolas. Ou investimos em uma educação de qualidade ou ficamos fingindo criando planos mirabolantes. Olhando para a proposta, não tem um momento no qual se diz que a preocupação é com a qualidade.

Estudantes fecham o trânsito para protestar em São Paulo (Ubiratan Leal/Outra Cidade)

Estudantes fecham o trânsito para protestar em São Paulo (Ubiratan Leal/Outra Cidade)

Como foi o processo de inclusão de metas no Plano Estadual de Educação sem consultar as pessoas e instituições que estavam participando das audiências públicas?

Isso foi uma manobra política que o plano não previa. Uma outra questão do Plano Estadual de Educação era a educação integral, um drama é que para ter escolas com mais tempo por turno, precisa diminuir o número de alunos daquelas escolas. Tem escolas com quatro turnos e teria que reorganizar isso porque não tem espaço. Uma coisa que o governo conseguiu fazer foi chamar a atenção para esse jeito não democrático de ele funcionar. O que fizeram foi dar o decreto e está resolvido. Colocaram uma emenda dentro do fórum e o governo tem prerrogativa para fazer isso. O fórum escreve o plano, mas tem assentos dentro do fórum que são da secretaria da educação, dando a ela condições de baixar o decreto e dizer que isso é legalmente sustentado.

O fato da escola estar a uma distância acessível a pé ou com transporte público de qualidade influencia a frequência escolar?

São Paulo é uma cidade complexa e mobilidade aqui é uma batalha. Vide aí a ciclovia e como as pessoas lidam com isso. Nós temos um transporte público ainda muito aquém de uma cidade do tamanho que é São Paulo. Isso tem um impacto na educação dessas crianças. Eu não consigo dizer se isso vai gerar evasão ou dificuldade de estudo. Dependendo do quão difícil é o acesso, leva tempo para chegar, o aluno poderia estar estudando e passa mais tempo tentando chegar que dentro do espaço escolar. Garantir esse acesso é uma questão importante. Estar próximo, morar próximo a uma escola onde os meninos possam ir a pé ou com uma condução muito perto é fundamental.

As escolas que são próximas e atendem alunos em segmentos de ensino diferentes conversam entre si para facilitar essa transição?

Nas escolas que já funcionam com segmentos, a transição quando os meninos saem do quinto ano e vão para o sexto não acontece como a gente gostaria. A integração acontece em poucos lugares e é complicada. As escolas ainda funcionam muito fechadas, elas não funcionam como rede. Há integração entre algumas escolas, mas elas mais disputam espaço que necessariamente fazem esse processo de transição. A criança que está no quinto ano e vai entrar no sexto tinha uma professora e passa a ter nove. Mas tem mais acusação: as escolas de ensino fundamental 2 reclamam que os meninos não chegam alfabetizados.

A convivência entre alunos de diferentes segmentos aumenta a probabilidade de as crianças menores sofrerem algum tipo de abuso das mais velhas?

Nós não temos esse dado, mas uma das coisas que a gente sabe é que essa integração entre crianças de diferentes faixas etárias é importante para o aprendizado dos alunos. O bullying não tem a ver com colocar meninos de uma faixa etária maiores com os menores. O bullying vem de diferenças sociais, racismo, machismo. Escolas que são só do primeiro ao quinto ano enfrentam questões sobre cabelos diferentes, cores diferentes. Isso pode acontecer tanto entre faixas etárias iguais. Se isso acontece, não é separando os meninos que vai resolver. Seria mais tranquilo se separar por faixa etária resolvesse esse problema.

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Quem acompanhava o desenvolvimento das políticas públicas de educação do estado esperava essa reforma? Ela fazia sentido dentro da forma como o governo conduzia a educação até então?

Não, foi uma surpresa para todo mundo, acho que só o governo sabia. Tanto que não foi só o Cenpec que foi contra, a reforma foi criticada por várias entidades. A USP, a Unicamp e a Unesp também se posicionaram contra. Ninguém foi consultado, ninguém fora do governo.

A quebra da rotina escolar por meio das ocupações também pode ter causado insegurança familiar?

As ocupações trouxeram um aprendizado para vários segmentos: para nós educadores, para as pessoas que trabalham na escola e para os pais. Alguns pais se surpreenderam com a capacidade de liderança desses meninos. Eles vieram ao Cenpec, a gente fez um fórum de discussão com eles aqui e é surpreendente observar meninos e meninas que tem uma desenvoltura, uma capacidade organização das ideias que são aquilo que a gente gostaria que os nossos alunos fossem. É um conflito normal de gerações alguns pais estarem contra a atitude de seus filhos. Aqui no encontro estiveram pais dizendo que eles estão aprendendo a lidar, é uma dimensão na qual a família foi pega de surpresa. Essa geração é de outra ordem, vai chegando de outro jeito. Eu não gosto da palavra “insegurança” porque dá a impressão que os meninos fizeram uma coisa e gerou um desconforto tão grande que a família ficou desnorteada. Alguns têm pressões também, mas a maioria apoiou, tanto que eles continuaram.

O Cenpec pretendem realizar estudos relacionados com a reforma escolar, sobre a separação dos segmentos em escolas diferentes, por exemplo?

O Cenpec tem estudos sobre currículo e essas questões vão impactar as nossas ações, com certeza. A gente não tem nenhum estudo ainda determinado sobre isso, até porque isso tudo é muito recente. Não sabemos os desdobramentos disso, se o governo vai negociar ou foi só uma estratégia para sair de cena e tentar não perder popularidade. Os nossos planos e ações em relação à educação integral preveem uma conversa: ouvir os alunos, ouvir a comunidade. Isso a gente já faz, mas não necessariamente por conta dessas novas manifestações.

Quais são as ações do Cenpec nas escolas ocupadas?

Nós fizemos três ações: primeiro um manifesto, depois outro em conjunto com as organizações sociais que lidam com educação e por fim entrevistas com os meninos. Aqui nós também trabalhamos com a cobertura via internet em parceria com os Jornalistas Livres. Estamos atentos e temos acompanhado os processos de ocupação. O Cenpec não define nada sobre as ocupações, ele está acompanhando e, na medida da sua institucionalidade, dando o apoio. Na nossa página aparece o tempo todo notícias sobre isso e é assim que a gente funciona, a ideia não é capitalizar em cima do movimento. Queremos trabalhar e aprender com eles, eles também aprendendo com a gente.