O acolhimento de pessoas em situação de rua precisa ser flexível, integrado com outros serviços públicos e abrangente. Enquanto em São Paulo a guarda municipal chegou a arrancar os cobertores para obrigar essa população a procurar abrigo em uma ação completamente equivocada, em Recife a demanda por vagas para acolhimento motiva atos públicos e debates com o objetivo de chamar a atenção do governo local para a necessidade de ampliar os serviços.
Ainda que, independente das condições climáticas, moradia continua sendo uma necessidade básica, são situações completamente diferentes. Enquanto que em Recife a temperatura média fica acima dos 24°C mesmo no inverno, em São Paulo pessoas morreram dormindo nas ruas nas noites frias de junho. Quando a oferta de acolhimento do serviço público é recusada por uma pessoa em situação de rua, em geral as reclamações são bem plausíveis: horários rígidos, ter que deixar seu animal de estimação do lado de fora, não poder guardar seu material de trabalho, entre outras.
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Patrícia Félix da Silva entrevistou 22 pessoas em situação de rua no Recife em sua pesquisa de mestrado em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Ela identificou que “o desemprego, atrelado à baixa renda, resvala em condições precárias de moradia antes da passagem à situação de rua”. Desavenças familiares e dependência química também foram identificadas como motivação de três dos entrevistados, mas a grande maioria apontou a falta de emprego e a recolocação no mercado como fator decisivo para a sua ida às ruas e para a saída delas, respectivamente.
Em um levantamento feito em 2005 pelo Instituto de Assistência Social e Cidadania (Iasc) da prefeitura de Recife, foram contabilizadas 1.390 pessoas em situação de rua. Entre elas, 67% eram do sexo masculino, 502 tinham entre 0 e 18 anos e 418 entre 19 e 35 anos. O levantamento foi feito como parte do censo nacional que serviu de base para a elaboração da Política Nacional para Inclusão Social da Pessoa em Situação de Rua (PNISPSR) instituída pelo decreto 7.053 de 2009 pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
A PNISPSR prevê a organização de um comitê com a participação de movimentos sociais e entidades representativas das população em situação de rua, além de membros dos setores institucionais responsáveis pelo atendimento prestado à essas pessoas. O comitê, por sua vez, tem a responsabilidade de elaborar um plano de propostas para implementar as ações previstas pela PNISPSR. O serviço de acolhimento temporário, segundo o artigo 8º, são regulamentados pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas) e estruturados de acordo com a necessidade de cada município.
A prefeitura do Recife assinou o termo de adesão à PNISPSR e realizou uma contagem das pessoas em situação de rua divulgado em fevereiro. O levantamento, feito entre as 23h e 7h sem acordar ou descobrir quem estava dormindo nas ruas, chegou a contar 773 pessoas. Fernanda Carvalho, chefe da divisão de serviços para a população em situação de rua da administração municipal, afirma que há uma demanda pela ampliação da rede pública de acolhimento para essas pessoas e que aproximadamente 400 disseram que teriam interesse em ingressar em abrigos institucionais.
Atualmente fazem parte da rede pública duas casas de acolhida para crianças e adolescentes com “vivência de rua” com 34 vagas e três casas para adultos em situação de rua somando 115 vagas, 40 exclusivamente para mulheres. Nesses locais, onde o atendimento é categorizado como serviço social especial de “alta complexidade” de acordo com o Suas, o tempo estipulado de permanência é de seis meses, com possibilidade de reavaliação.
A porta de entrada para essas instituições é a Casa de Passagem Diagnóstica, onde a permanência média, de acordo com o estudo de Silva, é de 30 dias. O ingresso nesse abrigo se dá por meio do encaminhamento feito pela rede socioassistencial. O Iasc afirma que realizou mais de mil acolhimentos em 2015. Além disso, Recife também sedia dois Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua, categorizado como de média complexidade, oferecem espaço para descanso, lavagem de roupas, alimentação e convivência entre as 8h e 17h.
“O abrigo não é a solução para as pessoas em situação de rua, mas a estrutura atual não atende à demanda. Se tivéssemos as condições climáticas de São Paulo seria uma tragédia”, diz Igor Sacha, do movimento Seja a Mudança. O movimento organizou atos públicos deitando manequins em papelões para cobrar a criação do primeiro abrigo temporário noturno da cidade.
A criação de um abrigo noturno faz parte da Política Municipal de Atenção Integrada à População em Situação de Rua, apresentado em dezembro de 2015. No entanto, Sacha argumenta que “as propostas apresentadas pelo plano não se baseiam em um trabalho rigoroso com base em dados, não diz onde nem quantas vagas serão criadas”.
Quando questionada sobre os últimos avanços, Carvalho diz que apresentou um projeto para uma casa de acolhimento 24 horas para a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, que coordena tanto as ações de alta como de média complexidade. A proposta, apresentada em maio, prevê um custo de R$ 88.694 para implantação e de R$ 63.360 para manutenção mensal.
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A política municipal prevê algumas medidas importantes como o trabalho integrado com a Secretaria de Habitação, mas não apresenta perspectivas sobre o número de vagas ou prazos para a implantação das propostas. Duas casas de acolhimento, uma 24 horas para homens em situação de rua com reserva de vagas para deficientes e outro abrigo noturno migrantes e população em geral. “Nos sentimos afofando a terra e plantando a semente. Existem questões que vão passar pelo orçamento, queremos ver se isso se fortalece e é importante que os usuários se organizem”, diz Carvalho.
O abaixo-assinado do Seja a Mudança para a criação do primeiro abrigo temporário noturno do Recife possui 7.412 apoiadores no Change.org e também possui algumas centenas de assinaturas coletadas no papel. O movimento surgiu em 2012 e sua primeira campanha, para a criação de um skate park em um espaço ao redor de um viaduto, recebeu mais de 3 mil assinaturas. A proposta foi apresentada à Secretaria de Esportes e saiu em abril, ainda que em outro local que não o proposto.